Guerra na Síria traz refugiados ao Brasil

O Estado é o responsável pela organização e pelo controle social do seu povo. Mas o que acontece quando o governo de um país não consegue amparar os indivíduos que vivem nele?

Ian Salmi
Esquina On-line
13 min readOct 11, 2017

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Mesquita dos Omíadas em Damasco, Síria, antes e depois da guerra

Explosões, desespero, tiros, medo, tumultos, preocupação, cenas que se repetem dia após dia, noite após noite e semana após semana. O conflito civil na Síria dura mais de 6 anos e tem impacto no mundo inteiro. Como consequência, diversos sírios fogem da terra natal em busca de refúgios em outros países ao redor do mundo, o Brasil é um deles.

Como tudo começou?

Tudo começou em dezembro de 2010, na Tunísia, quando um jovem ateou fogo no próprio corpo, uma maneira de protestar contra as condições autoritárias do país em que ele morava. Mohamed Bouazizi não tinha noção de que o ato desesperado iria desencadear uma das maiores ondas de protestos da história, a Primavera Árabe.

Nahla Yahia, 58, é síria e vive há mais de 30 anos no Brasil, mas não saiu de Tartus, no litoral da Síria por conta dos conflitos, e sim porque o pai veio de férias ao país em 1970 e acabou gostando. “Eu visitava constantemente a Síria, ainda tenho familiares e amigos lá. As crianças costumavam brincar até 3 horas da manhã na rua, não existia criminalidade, o único problema é a guerra”.

Lembranças da Síria

Eles encontraram na capital brasileira o novo lar, mas mantêm intactas as memórias da guerra

Uma bomba na porta de casa

Lidia El Bahri, 22, morava em Swaida, no sul da Síria, decidiu se mudar quando um carro bomba explodiu na frente da sua casa em 2013, “Era comum esse tipo de coisa acontecer, a gente só se tocou que precisava ir embora quando aconteceu na nossa frente”.

Há 4 anos em Brasília, Lidia está no 4º semestre de engenharia.

Para se adaptar, não foi fácil. Quando chegou, não teve ajuda de ninguém e conta que sofreu preconceito por ser árabe. “Você fica quieta aí, porque você não é brasileira”, ouviu. Ainda em seu primeiro trabalho, em um hotel internacional escutou:”Você é estrangeira, eu não quero falar com você. Passa (o telefone) para um brasileiro”. Lidia conta que aprender a falar a língua não foi um problema, mas teve dificuldades para fazer amigos e reclamou que os brasilienses são muito fechados.

George agradece as oportunidades que o Brasil deu a ele

George Alnameh, 22, estudava ciências políticas em Damasco e decidiu que viria para o Brasil quando foi chamado pelo governo para servir no Exército. Quer conhecer mais sobre a história de George? Leia o restante no final da matéria.

O número de refugiados no mundo cresceu em pelo menos 243 vezes desde o inicio da guerra até os dias de hoje. Danilo Porfirio, cientista político especialista em povos árabes, explica que “a reivindicação que deu início a guerra, era pela derrocada de uma ditadura que está há dezenas de anos no poder, dominando aquela região, o povo cansou.

É comum os sírios resistirem a ideia de ir embora de seu país. Foi o caso de Lídia, que só percebeu o perigo quando presenciou uma explosão; e também de George, que saiu do país apenas quando seria obrigado a servir as forças armadas.

Rosita Milesi, diretora do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), conta que “a maioria dos refugiados sírios investe na comida árabe como fonte de renda. Alguns tomam iniciativas e empreendem o próprio negócio”. É o caso de Diana Salam, dona de uma loja de doces árabes na asa sul que contratou Hayan Al Darwish, um refugiado, para trabalhar em sua loja.

O jovem, de 26 anos, é sírio, cristão e morava em Homs. Terminou o curso de engenharia, mas por questões burocráticas do governo, não recebeu o diploma. Ele precisava que um funcionário do exército assinasse seu certificado, o que não aconteceu. Veio para o Brasil para fugir da guerra há cerca de um ano, e trabalha como cozinheiro em uma loja de doces árabes.

Diana contratou Hayan por conta de suas condições e entendia que ele precisava de ajuda. “Eu não sabia cozinhar antes de chegar no Brasil, ela me deu uma chance e eu aprendi tudo aqui”. Ainda enfatiza que toda ajuda que recebeu foi de seus amigos e conhecidos que estavam em Brasília. Segundo Hayan, a embaixada da Síria não fez nada por ele.

Hayan, engenheiro, hoje trabalha fazendo doces

Poucas saudades, felizes aqui

Todos os entrevistados tem uma coisa em comum, eles estão felizes no Brasil e não sentem saudade de casa. “Não sinto falta daquele lugar, estou muito bem estabelecido aqui. A única coisa que realmente faz falta pra mim é a minha família, eles que importam”, disse George.

Lidia, mesmo com o preconceito sofrido aqui, relata que quase não sente saudades da Síria, mas ainda não está totalmente satisfeita com o Brasil. “O Brasil é ótimo em alguns aspectos, eu amo as pessoas, o clima e a natureza, mas não gosto de algumas outras coisas, como a insegurança, a corrupção e o jeitinho brasileiro”.

Hayan que saiu da Síria por conta da guerra e da falta de oportunidades pode confirmar.“Aqui é um país maravilhoso que aceita todos, é um lugar que não tem problema com ninguém”. Com poucos meses de residência no Brasil, o rapaz já tinha RG, CPF e trabalhava com carteira assinada.

Situação dos Sírios no Brasil

Nos últimos anos o Brasil se tornou o principal destino de refugiados sírios na América Latina. Aqui, a situação é diferente. Dados do Ipea mostram que, em 2011, 180 pedidos de refúgio foram aceitos no Brasil. Em 2015, esse número subiu para 7.662. Isso se deu, principalmente, devido à primavera árabe.

Segundo estimativa, os sírios representam 33% dos pelo menos 10 mil refugiados no país hoje e, enquanto a guerra durar, esse número tende a aumentar cada vez mais.

Neste ano, o presidente Michel Temer aproveitou uma homenagem recebida pela comunidade libanesa para reiterar a mensagem de que o Brasil está aberto aos refugiados sírios. Segundo Porfírio, isso reafirma o exemplo de país hospedeiro. “Somos um exemplo de hospitalidade, acolhimento, solidariedade. Abrir as portas para esse tipo de migrante é mais que um ato político, é um ato humanitário”.

Rosita conta que parcerias com a Universidade Católica de Brasília e o Núcleo de Ensino de Português para Estrangeiros da UnB (Neppe) são essenciais em uma primeira fase do estrangeiro aqui. “É um momento em que as pessoas estão desamparadas, deve-se prestar assistência básica para futuramente implementar ações que favoreçam o auto sustento, como trabalho ou atividades que gerem renda”.

A situação da Síria é crítica e não tem previsão para acabar. Ainda em abril deste ano, a embaixadora dos EUA na ONU, Nikky Haley, afirmou que não vê uma solução política para o conflito, a não ser que o presidente, Bashar al-Assad, saia do poder. “Não há nenhuma tipo de opção para uma solução política na Síria se Assad continuar à frente do regime”, garante.

Por mais que seja uma complexa situação de tensão, Porfírio acredita que a primeira medida para solucionar o que se passa na Síria é uma intervenção direta ou indireta de cunho militar para aniquilar o Estado Islâmico. O segundo passo seria chegar a um consenso quanto à comunidade internacional. “O problema é que nem o Bashar al-Assad abre mão do governo, nem o movimento ‘Síria Livre’ abre mão de uma saída gradual do presidente”, acrescenta.

Questão Religiosa

O islamismo é a religião mais predominante no Oriente Médio, com cerca de 90% da população como adeptos. Quando Maomé morreu, a religião sofreu diversas ramificações, entre elas as mais conhecidas, o xiismo e o sunismo.

Os sunitas são maioria, representam mais de 80% da população islâmica, são considerados tradicionais e conhecidos por não serem adeptos ao radicalismo islâmico, enquanto os xiitas são minoria, porém com forte influência em alguns países, como o Irã e o Iraque.

Bashar al-Assad é o atual presidente da Síria, cuja família manda no país há mais de 40 anos. Assad faz parte da seita alauíta, e, de acordo com Danilo Porfírio, “os integrantes do alaluísmo não se consideram muçulmanos, eles têm uma mistura de valores de diversas religiões, como valores drusos, cristãos e muçulmanos xiitas. Portanto, por terem uma semelhança muito grande dos xiitas, são aliados dos mesmos.”

A Síria é um país composto por cerca de 60% de sunitas, enquanto 13% são xiitas ou alauítas. Os sunitas, que podem ser de diversas vertentes, se unem com o interesse comum de derrubar o ditador Bashar al-Assad e eleger um governante que os represente.

Agravamento da Guerra

Depois da contenção violenta sofrida pelos jovens que protestavam contra o governo e das diversas manifestações ocorridas em Damasco e Aleppo, principais cidades, alguns grupos começaram a se formar oficialmente, cresceram e passaram a dominar territórios, como cidades e vilas.

O Exército Livre da Síria, grupo composto por civis e ex-militares, surgiu em 2011 com o intuito de depor o presidente Bashar al-Assad do poder. Atualmente, estão à frente da guerra civil e afirmam lutar para instaurar uma liderança democrática e justa no país.

Hoje, a guerra tem consequências drásticas, são pelo menos 400 mil mortos, mais de 5 milhões de refugiados que saíram do país e o conflito obrigou pelo menos 6 milhões de sírios a se deslocarem dentro das fronteiras.

George Alnameh, 22, estudava relações internacionais em Damasco e decidiu que viria para o Brasil quando foi chamado pelo governo para servir ao exército. Você pode conhecer a história de George ao final dessa matéria.

Dados: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

Outros Fatores: EUA, Rússia, ISIS, Curdos e Israel

Além do conflito estabelecido na Síria, entre a população e o governo, há quatro principais grupos envolvidos direta ou indiretamente no conflito e nas relações com a Síria.

Foto: Vídeo divulgado pelo ISIS

Estado Islâmico (ISIS) — É uma organização terrorista, fundamentalista, extremista e radical. O ISIS inicialmente era inimigo do governo e aliado da oposição, porém, se aproveitou do conflito para promover ataque aos dois lados e dominar a maior quantia de territórios possíveis.

Fuzileiros navais chegam na Síria para dar suporte de artilharia ao combate contra o Estado Islâmico

Estados Unidos (EUA) — Os EUA são contra o governo sírio e também contra o ISIS, por se tratar de um grupo terrorista. Em 2014, quando o Estado Islâmico avançava e se aproximava dos territórios da oposição do governo, os EUA promoveram uma série de ataques aéreos para enfraquecer os terroristas e manter os territórios da oposição síria.

Bashar al-Assad junto do presidente russo, Vladimir Putin

Rússia (RUS) — A Rússia é o principal fornecedor de armas para o governo Sírio, sendo assim, países aliados. Recentemente a Rússia acusou os EUA de colaborar com o Estado Islâmico. Em 2015, a Rússia promoveu ataques contra o ISIS, porém diversos relatos de ativistas da oposição contam que os ataques têm matado civis e rebeldes apoiados pelos Estados Unidos. O maior problema é que a Rússia possui poder de veto no Conselho de Segurança da ONU e, em 6 anos de guerra, já utilizou o voto 9 vezes para proteger o aliado.

Foto: Safin Hamed/AFP

Curdos — Com mais de 25 milhões de pessoas, os curdos são a maior nação do mundo sem um Estado, eles reivindicam a criação de um país, o Curdistão. Na Síria, estão localizados no norte do país, onde dominaram uma grande região perto da fronteira com a Turquia. Os curdos adotam uma posição de neutralidade em relação ao conflito sírio, o que é útil para o governo, pois eles se opõem diretamente ao ISIS.

Foto: Alexi Rosenfeld/IDF

Israel — Os conflitos na fronteira entre a Síria e Israel (re)começaram em 2012, quando pequenas bombas sírias caíram perto de uma base militar israelense nas Colinas de Golã. Os dois países reivindicam as Colinas, território ocupado atualmente por Israel.

Situação dos Sírios no mundo

No mundo são mais de 5 milhões de refugiados, mais de 3 milhões na Turquia, país que faz fronteira com o norte da Síria e que tem um acordo com a União Europeia para que os refugiados não fujam para a Europa. A Turquia aloca os refugiados em troca de concessões políticas e financeiras.

Outros 2 milhões de refugiados buscam asilo em diversas regiões do Oriente Médio, os principais fluxos migratórios são: Líbano, Iraque, Jordânia, Egito e países ao Norte da África.

Principais rotas dos refugiados sírios. Dados: Acnur

Atualmente, há um grande esforço dos Estados Unidos, da ONU e da União Europeia, em apoiar financeiramente os países vizinhos para que acolham os refugiados. A religião é um fator muito importante para os árabes, mas quando se trata de fugir de uma guerra, a religião não é mais considerada. É o que conta Danilo Porfírio. “Não há um problema de discriminação religiosa, propriamente. Ainda mais porque, hoje, a Turquia e o Iraque são países laicos”.

História da Síria

Com uma história que data pelo menos os anos de 4500 a.C. , a Síria na Antiguidade incluía também a Mesopotâmia, onde atualmente é o Iraque e o Líbano. Ao longo dos anos foi ocupada por cananeus, fenícios, arameus, hebreus, egípcios, sumérios, assírios, babilônios, hititas, persas, gregos e bizantinos.

Abaixo duas linhas do tempo relatando os principais acontecimentos que envolvem a Síria, as linhas estão dividas entre antes de Cristo e depois de Cristo.

Conheça a trajetória de George, um sírio que veio a Brasília para fugir da guerra

Hoje, George Alnameh, 22, é estudante da UnB e morador da Asa Norte. Mas, para chegar onde chegou, não foi nada fácil. Há dois anos, a vida de George era bem diferente. Ele morava em Damasco, capital da Síria, estava no terceiro ano da faculdade e trabalhava na loja de informática de um amigo. Mesmo com os horrores de uma guerra civil, só tomou a decisão de sair do país de origem quando entrou na blacklist do exército Sírio.

“Blacklist é como a gente chama a lista de pessoas que vão ter que servir o exército, é uma lista do governo que ninguém quer entrar”

George em um dos corredores da Universidade de Brasília

Por sorte, o sírio também trabalhava como técnico de cantores locais e isso fez com que conseguisse o visto para morar no Brasil. No final de 2014, os músicos com quem George trabalhava tiveram de atravessar a fronteira para o Líbano, onde iriam gravar algumas músicas em um estúdio no país. Quando uma pessoa entra no Líbano pela primeira vez, recebe um visto com direito a 6 meses de residência. Após entrar legalmente no país e receber esse direito, ele voltou para a Síria pelas fronteiras, ilegalmente. Assim não perderia o direito de residência.

Passou mais algumas semanas na Síria, quando recebeu um ultimato do exército: teria que servir. Nesse caso, não importa ser ou não a favor do governo, quase ninguém quer servir o exército de um país em conflito. A morte é o destino mais provável para militares de baixa patente das forças armadas de um país em guerra.

Ele precisava sair do país rapidamente. Foi quando conheceu um taxista que o ajudou a fugir pelas montanhas, de volta ao Líbano. Passou algumas semanas no país, quando conseguiu o visto com o consulado brasileiro. Veio para o Brasil no dia 6 de maio de 2015. Chegou em São Paulo com menos de 200 dólares no bolso.

George se encontrava em um país totalmente diferente, sem falar a língua local. Precisava sobreviver de alguma maneira: começou a investir dinheiro e passou a revender capinhas de celular em semáforos e ruas da maior cidade brasileira.

Após 4 meses hospedado em hostels e igrejas de São Paulo, decidiu que viria para a Capital, Brasília. Seu primo já morava aqui e poderia o ajudar quando chegasse à cidade. Arranjou um emprego em um bar e restaurante árabe, onde preparava narguiles, foi rapidamente promovido a gerente. Após 6 meses de trabalho, conseguiu uma oferta melhor, em um departamento financeiro de advocacia.

Narguile é um instrumento de fumo árabe, que começou a se popularizar no Brasil a partir de 2010

A partir de então, já estabilizado financeiramente, encontrou outros problemas. No âmbito social, reclama que fazer amigos é muito difícil. “O brasileiro é um povo receptivo, mas muito fechado”, diz.

Em 2016, mesmo com certa estabilidade financeira, via a necessidade de se formar. Foi quando fez uma prova de equivalência para o Ensino Médio e concorreu em vagas destinadas especificamente a refugiados na Universidade de Brasília. Hoje cursa Relações Internacionais.

Após entrar na faculdade, decidiu abrir com o primo o próprio negócio, um restaurante de fast food, vegano e árabe, na Asa Sul. Lá, poderia trabalhar sem precisar estar no local.

Ao ser questionado, George brinca e diz que já se sente brasileiro: “só falta o sotaque”. “Já estou estabilizado, não sou mais um refugiado. O brasileiro está sofrendo (para achar empregos e se sustentar), eu não”, afirma.

As diferenças culturais foram um problema para o estudante, que admite ter tido um grande choque cultural, demorando a se acostumar. “Eu venho de um lugar em que não respeitam nem pessoas de outras religiões, imagina minorias. Aqui no Brasil todo mundo é aceito”, explica.

“Minha namorada que me ensinou a respeitar os gays, as mulheres, transexuais, travestis. O ambiente em que eu vivia era muito fechado. Não é culpa minha, sabe? Eles ensinam isso desde pequeno”, lamenta.

George Alnameh é um dos mais de 5 milhões de sírios refugiados em outros países. Por mais que tenha se estabelecido, muitos ainda lutam para conseguir emprego, moradia e estabilidade em países diferentes, com culturas opostas.

Podcast

Nesse podcast você poderá ouvir uma conversa com Danilo Porfírio, professor especialista em povos árabes, que explica de maneira mais aprofundada a situação da Síria.

Por Ian Salmi

Contato:

iansalmi@hotmail.com

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