Sacrifícios pela glória

Matheus Garzon
Esquina On-line
Published in
7 min readNov 7, 2018

“É difícil chegar no topo, mas manter-se nele é mais difícil ainda”, diz o ditado. Na vida de um lutador de MMA, a regra não é diferente. Se engana quem pensa que basta ter apenas boa técnica e treinar bastante. São muitos os sacrifícios que os lutadores passam só para alcançar o sonho de se tornar um grande campeão.

Uma das grandes dificuldades é a relação com a balança. É caso recorrente dentro dos esportes de luta que o atleta perca muito peso em um período curto, para poder lutar numa categoria onde ele possa tirar algum tipo de vantagem. Rani Yahya, lutador peso-galo do UFC, explica que se tornou quase impossível não se submeter a um processo desse. “Meu peso em off (sem ter luta marcada) fica em torno dos 71 quilos. Para lutar na minha categoria, tenho que bater os 61,6 quilos. Aí você me pergunta porque não luto na peso-pena, que é 66 quilos? O problema é que quem luta nessa categoria, em off, pesa 80”, comenta.

Isso, segundo o lutador, dá uma vantagem enorme ao oponente. Rani relata que, quando lutava na categoria acima, havia uma diferença de peso muito grande entre ele e o adversário. “Então minha perda de peso era ótima, minha recuperação era excelente, mas na hora da luta eu tava dando uma vantagem pro meu oponente de seis ou sete quilos. Isso, num alto nível, é uma diferença muito grande”, argumenta.

Gustavo Carvalho, nutricionista especializado na área esportiva, expõe que é comum os atletas ficarem sem comer, para atingir a marca tão importante no dia da pesagem. “Alguns lutadores ficam em inanição por mais de um dia para que preencham o peso adequado. Há também a parte de hidratação, que leva a uma perda de líquido muito significativa”, conta.

Essa parte de hiper-hidratação, que posteriormente leva a uma desidratação, é algo rotineiro nos momentos de pré-luta de Rani Yahya, que passa a tomar grandes quantidades de água uma semana antes do combate. “A pesagem geralmente é numa sexta-feira. No sábado, uma semana antes então, eu vou tomar 12 litros de água. No domingo eu tomo 10, na segunda são oito litros, na terça são seis, na quarta bebo quatro litros e na quinta apenas dois.”

Rani, em 2011, logo após a pesagem para o UFC 133 (Reprodução/Instagram)

O processo, segundo Gustavo Carvalho, tem como propósito modificar a atuação de um hormônio antidiurético chamado ADH. “Com a quantidade de água ingerida inicialmente, o atleta passa a ter grandes perdas de líquido. Com a aproximação da luta, o lutador começa a tomar menos água, mas o corpo ainda está com o ADH desregulado, ou seja, menos líquido entra no corpo, só que a liberação continua alta”, explica.

Todo esse rigor, aliado a uma alimentação restrita, faz com que Rani chegue ao dia da pesagem com cerca de 64 quilos. “Acordo de jejum, não vou comer nada, e vou para uma banheira de água quente. Fico com água até o pescoço e faço rounds de cinco minutos dentro e cinco minutos fora. Isso me faz perder todo o líquido acumulado e, consequentemente, os cerca de três quilos para poder alcançar os 61,6 quilos”, diz o lutador que ressalta que o peso da balança na frente das câmeras, nunca será o peso do atleta por mais de meia hora.

Confira na entrevista com o nutricionista Gustavo Carvalho, como que a alimentação influencia o rendimento do atleta.

Passada a tão temida pesagem, Rani conta que uma nova dieta já se inicia para que no dia seguinte, ele esteja de volta ao peso considerado de alto desempenho. “Logo após já começo a tomar água com pedialyte (soro usado para reposição de fluidos no corpo), consumo frutas e castanha e, no fim do dia, eu como uma pizza e uma sobremesa, um sorvete ou açaí”, explica. Com isso, na hora da luta, ele diz já ter recuperado cerca de sete quilos e lutará com o peso de 68 ou 69 quilos.

Após a luta, de acordo com Gustavo, é que está o grande perigo. Isso porque os atletas se privaram durante muito tempo de uma alimentação prazerosa e, a tendência, é que a dieta seja abandonada. “Eles se privam muito, num período de quatro a seis semanas que antecedem a luta, mas depois costuma a ser uma gangorra. Do mesmo jeito que apertou demais no período anterior a luta, vem um período de uma instabilidade alimentar muito grande.”

Veja no vídeo abaixo, como que o nutricionista explica a importância de se manter numa faixa de peso próxima ao da categoria.

E as lesões?

É recorrente casos de atletas lesionados após uma luta. Gilberto Cangaceiro, campeão dos pesos-palha no Shooto Brasil e Jungle Fight, os dois principais eventos do país, por exemplo, quando concedeu entrevista à reportagem do Esquina, tinha lutado há pouco tempo e ainda não podia voltar à rotina de treinos que ele está acostumado. “Estou vindo de lesão e não posso ficar pegando pesado. É uma mais grave no quadril e outra no joelho”, relata o lutador que fazia sessões de fisioterapia antes de treinar como de costume.

A atitude de adotar repouso antes de voltar à rotina puxada é louvável, segundo o ortopedista Ronny Machado. “Com relação às articulações a gente se preocupa muito com as lesões ligamentares, como exemplo, no joelho ou ombro. Nesses casos, a gente avalia se só uma fisioterapia resolve ou se é necessário tratamento cirúrgico” , afirma o médico.

Além disso, o ortopedista chama a atenção para um fato curioso. Dependendo da especialidade do atleta, o tipo de lesão lesão mais comum pode ser diferente. Acompanhe no vídeo.

Outro problema que acomete Cangaceiro são as dores crônicas, daquelas que independente se lutou ou não, elas estão lá. “Atleta de luta tem dor em todo canto, não tem jeito. Tenho dores na lombar, cheio de lesão… esse esporte é muito difícil”, comenta.

De acordo com Ronny Machado, esse é o preço que se paga ao se praticar um esporte de alto rendimento. No fim das contas, ele afirma, o atleta tem um corpo saudável, só que mais desgastado. Acompanhe no vídeo.

A temida concussão

Apesar de todos os problemas que o corpo pode apresentar, nenhum chama mais a atenção de médicos e lutadores do que a concussão cerebral, causada por pancadas na cabeça. Já existem vários estudos, principalmente nos Estados Unidos, no sentido de entender melhor quais os efeitos, a longo prazo, de se tomar tantos golpes na cabeça. Em terras brasileiras, no entanto, de acordo com o fisiatra e médico do esporte, Moacir Neto, o assunto ainda engatinha.

Neto é um dos dois únicos médicos do Brasil que se especializaram na área de concussão cerebral. Teve de ir a Pittsburgh, nos Estados Unidos, para entender melhor o que acontece com o corpo após grandes impactos e hoje, lidera pesquisas e tenta implementar no Brasil um rigoroso controle da saúde dos atletas.

O grande perigo, de acordo com o médico, é a facilidade com que uma concussão pode passar despercebida pelos sintomas serem genéricos. “O paciente fica confuso, pode ter desequilíbrio, alterações no sono, a visão pode ficar nublada ou luzes aparecem. Além disso, é possível que o atleta tenha dor de cabeça do tipo enxaqueca, com náuseas e sensibilidade à luz”. Além disso, por se tratar de uma alteração química, a detecção de uma concussão não é feita pelos meio tradicionais. “Quando faz uma ressonância magnética ou uma tomografia computadorizada, a concussão não aparece nesses exames. Eles são feitos mais para descartar outros problemas, como traumatismos e hemorragias”, explica o médico.

O fisiatra Moacir Neto assinala a importância de avaliações clínicas antes da luta.

Além das preocupações imediatas, com a chamada Síndrome do Segundo Impacto, onde o atleta que ainda não se recuperou toma outra pancada e pode até morrer, os efeitos de longo prazo são pauta frequente não apenas em congressos médicos, mas na conversa dos lutadores. “Agora que estamos a primeira geração de lutadores aposentado que começamos a ver as consequências”, lamenta Rani Yahya, lutador do UFC.

Ele admite ter preocupação com o futuro, não por causa das lutas, mas por causa dos treinos a que os atletas são submetidos. “Nas minha três últimas lutas eu saí sem nenhum arranhão, tomei nenhum soco. Problema é o treinamento, onde eu tomo muita pancada na cabeça”, compara.

Rani diz que pretende parar de lutar no MMA em 2022, quando completará 38 anos. A vontade, ele diz, não é por achar que não terá condições de encarar os adversários, mas pela saúde. “Até pretendo continuar no jiu-jitsu, nessas categorias master, mas sem fazer qualquer coisa no sentido de tomar pancada na cabeça e de fazer a desidratação do corpo”, conta.

Leia o estudo completo no link https://bmjopensem.bmj.com/content/4/1/e000348

O especialista em concussões Moacir Neto, afirma que os estudos nesse aspecto ainda não são conclusivos, mas que já existem correntes de pensamento dentro da medicina que afirmam haver uma doença causada por impactos repetitivos na cabeça, a encefalopatia crônica traumática. Acompanhe no vídeo.

E porque as pessoas praticam?

Para entender o porquê de alguém se sujeitar a eventuais problemas físicos e psicológicos é necessário conversar não apenas com médicos ou lutadores.

O sociólogo do esporte Luiz Renato Vieira foi o convidado do podcast Reflexões do Esporte e explicou como que as lutas deixaram de ser algo feito para se defender e matar o adversário e se tornou um evento midiático que move milhões de reais.

Acompanhe a conversa.

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