Faces do preconceito e desafios da aceitação

Ana Karolline Rodrigues
Esquina On-line
Published in
9 min readNov 14, 2018

Como é ser uma pessoa trans no Brasil, país com maior índice de assassinatos de travestis e transexuais no mundo

Arte: Viviane Pine

Gritos por socorro, vários disparos e sonhos de um futuro assassinados. Karliane Vitória Rodrigues, 21 anos, morreu com tiros de um revólver de calibre 22 milímetros em suas costas, em Taguatinga Sul, Distrito Federal, na noite do dia 4 de dezembro de 2018.

Como 90% da população trans brasileira, Karla -como gostava de ser chamada- se sustentava a partir da prostituição e estava na rua, próxima a um quiosque em Taguatinga Sul, na noite em que foi assassinada. De acordo com a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), um ciclista é apontado como o principal suspeito do crime. O caso está sendo investigado pela 21ª Delegacia de Polícia e o agressor ainda não foi identificado.

Durante a execução desta reportagem, Karla participou de um documentário sobre um pensionato no Riacho Fundo I, que acolhe mulheres trans como ela (ver abaixo na matéria). Em meio à risadas, a menina sonhadora facilmente se abria sobre os desejos futuros e repetidamente agradecia pela vida.

“A gente que é trans tem vários sonhos. Um sonho é ser famosa, outro é ser rica no futuro, ser casada. Algumas pensam em viajar pra fora, essas coisas. Eu pretendo fazer isso tudo”.

Karliane Vitória. Imagem: Reprodução / Instagram

Os depoimentos de Karliane e de outras mulheres trans que vivem no pensionato no Riacho Fundo I você confere mais abaixo na matéria.

Números assustadores

Olhares tortos, injúria e violência. Isto é o que sofre diariamente a grande maioria dos transexuais e travestis brasileiros. No país com os mais altos números de assassinatos dessa população, as mais diversas formas de discriminação muitas vezes já começam em casa, com a própria família, passam pelas burocracias para assumir o nome social e chegam até os vários empecilhos para a inserção no mercado formal de trabalho.

De acordo com a pesquisa Transrespect Versus Transphobia, feita pela ONG International Transgender Europe (TGEU), entre janeiro de 2008 e setembro de 2018, foram registrados 2.982 assassinatos de pessoas trans (travestis e transexuais) no mundo. O levantamento foi lançado no mês de novembro em decorrência do Dia Internacional da Memória Trans (20/11).

No estudo feito em 72 países, o Brasil ficou em primeiro lugar, com 1.238 assassinatos nestes dez anos, o que representa 41,5% do índice mundial. Outro dado impressionante é ainda como o país se distancia das nações que seguem: o México, que ficou em segundo lugar, registrou 408 assassinatos neste intervalo de tempo e os Estados Unidos, 212. Isto significa que se forem somados os números de todos os outros 69 países chega-se a 1.124 assassinatos, quantidade ainda menor que o índice brasileiro.

A pesquisa também mostrou que de outubro de 2017 a setembro de 2018, estes números permaneceram igualmente elevados. Neste período, dos 369 trans assassinados no mundo, 167 eram brasileiros. Ou seja, a cada dez assassinatos dessa população, pelo menos quatro ocorrem no Brasil.

Uma outra estatística, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), mostrou que no ano passado 179 pessoas trans foram mortas no país. Neste ano, até setembro, foram 125 assassinatos dessa população.

Segundo a pesquisa Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, da ANTRA, entre os casos concluídos, 96% foram arquivados, sendo somente 4% os que resultaram em denúncias à Justiça. De acordo com o levantamento, cerca de 80% dos assassinos não tem relação direta com a vítima, por geralmente serem possíveis clientes daquelas que trabalham como profissionais do sexo.

De acordo com a promotora de Justiça e integrante do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do Ministério Público do Distrito Federal, Cíntia Costa, devido à própria marginalização que as pessoas trans sofrem, uma grande parte delas vive em locais mais afastados dos centros. Ela explica que a dificuldade da Justiça em resolver tais casos de homicídio existe tanto por ocorrerem em sua maioria nestas localizações, quanto pelo fato de geralmente não haver testemunhas no momento do crime.

Em áudio, a promotora explica sobre as altas taxas de homicídio no país e a dificuldade da Justiça em resolver estes casos. Ouça a seguir:

Vida nas ruas

Ainda de acordo com dados da ANTRA de 2017, 90% das pessoas trans brasileiras vivem da prostituição devido a dificuldade em se estabelecerem no mercado de trabalho. Esses obstáculos existem tanto pelo preconceito quanto, principalmente, pela baixa escolaridade advinda da exclusão social e familiar. Segundo o estudo, a idade média em que travestis e transexuais são expulsos de casa pelos pais é 13 anos de idade. Por conta disso, cerca de 99% não têm ensino superior, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental.

Essa realidade das ruas era vivida diariamente por Karliane Vitória, por não ter encontrado outra oportunidade de sustento. Juntamente com Kimberly Castro, Alana Bones e mais outras várias mulheres transexuais, ela vivia em um pensionato localizado no Riacho Fundo I, Distrito Federal.

Em julho de 2017, Brenda Souza, dona do pensionato, resolveu abrir a casa para receber mulheres trans como ela. Seu desejo era conseguir se manter financeiramente através do dinheiro da hospedagem das mulheres e, consequentemente, largar a prostituição. Ela não sabia, porém, das adversidades que teria que passar por acolher pessoas que trabalham na rua.

Em setembro do mesmo ano, Raica -apelido pelo qual é chamada- foi presa sob acusação de cobrar propina nos pontos da rua e administrar uma casa de prostituição. Por conta disso, a dona do pensionato teve que passar por longos cinco meses no Centro de Detenção Provisória (CDP), presídio masculino localizado em São Sebastião. Ela conta que após conseguir a liberdade, em fevereiro, foram muitas as dificuldades para se reestruturar psicologicamente. “Eu tô me levantando por agora, porque quando eu saí minha vontade era só de me matar”, afirmou.

Há quatro anos, Raica largou a prostituição e, hoje, une seus ganhos do pensionato com os lucros que tem com a venda de roupas. Ela, que começou a trabalhar nas ruas aos 16, nunca gostou da profissão. Hoje, com 26 anos, aconselha as amigas para que, como ela, procurem formas alternativas de sustento.

"É uma vida que não é legal. Falo pras meninas aqui direto: guarda dinheiro, compra alguma coisa, porque se você ficar doente, se você for parar na cama de um hospital, você tem ao menos alguma coisa pra poder vender pra se manter, porque se for depender dos outros, aí é difícil".

Confira a realidade destas mulheres no documentário abaixo:

“Sorte” para poucos

Mesmo vivendo com menos receios e passando por situações de menos perigo que a grande maioria da população trans brasileira, pessoas como Cris Qadash e Kyara Zaruty, que se definem como exceções entre transexuais, ainda não deixam de passar por casos de discriminação no cotidiano.

Casado há três anos e pai há um mês, Cris Qadash, 33 anos, alcançou a chance de uma vida sem os medos da maioria de pessoas trans que vivem no Brasil. Inserido entre os 0,02% que conseguiram ingressar na universidade, Cris fez faculdade de publicidade e atualmente trabalha como freelancer.

“Eu sempre falo que sou uma pessoa muito privilegiada, em todos os aspectos”.

Mesmo com os privilégios que Cris considera ter em relação à outros homens trans, o publicitário ainda passa por problemas com a própria família e por momentos de discriminação, que permanecem em sua memória.

Em 2016, Cris resolveu começar sua transição e assumir-se como homem. Após acompanhar relatos de mudanças de outros homens trans em grupos no Facebook, ele resolveu comprar seus primeiros binders. A nomenclatura se refere à faixa que comprime os seios que muitos homens trans utilizam no início da transição para conseguir se aproximar do corpo masculino. Na época, Cris já estava casado e conta que teve receio de contar à esposa, Fabrícia, sobre seu desejo de assumir-se como homem.

Ao receber em casa as faixas que comprou, percebeu que já não havia mais como esconder e revelou o que sentia. Sem muitas perguntas, diferente de seus familiares, que ainda não o aceitam como homem, Fabrícia apoiou a escolha. “Ela é tão mente aberta que às vezes eu acho impossível uma pessoa ser assim”, afirmou sobre a esposa.

Arte: Viviane Pine

Expulsa de casa aos 14 anos, Kyara Zaruty também considera que encontrou a sorte. Após as reviravoltas que surgiram em sua vida, a militante de 31 anos conseguiu se incluir entre os 10% de pessoas trans brasileiras que conseguiram não entrar para a prostituição. Ativista social e política, ela foi a primeira mulher trans a mudar o nome e o gênero em primeira instância no Distrito Federal e a terceira no Brasil.

Kyara recebeu o certificado no Dia Internacional da Mulher

Para alcançar essas conquistas, no entanto, Kyara ainda teve que passar por muito. Ainda criança, ela percebeu que se sentia diferente e, aos 12 anos, assumiu para os pais a sua homossexualidade na época. Dois anos depois, Kyara se descobriu como uma mulher trans e, por conta disso, foi expulsa de casa pela família.

A adolescente que encontrou refúgio na casa de uma tia também não foi abrigada por muito tempo no local. Aos 16 anos, foi expulsa novamente da residência em que morava e logo teve que procurar um emprego para se sustentar e abrigo para viver.

Desde então, até os 30 anos completados em 2017, a ativista vivia sem residência fixa. Por 12 anos viveu viajando com o circo em que trabalhou e sempre persistiu em se manter da forma que conseguia. Após finalmente garantir um emprego fixo em Brasília, Kyara viu as portas se abrirem.

“Se eu não tivesse ido pelo mundo da cultura, provavelmente teria ido pelo mundo da prostituição, porque seria a única forma do meu sustento já que eu não tive apoio da minha família (…) Eu me considero uma mulher sortuda”.

Engajada em projetos sociais, atualmente, ela é vice-presidente da Casa Rosa, projeto que oferece abrigo à população LGBTI do Distrito Federal. O objetivo do local, que ainda está em construção, é ser uma casa de passagem para essas pessoas que não têm residência fixa e buscam por acolhimento, como um dia Kyara necessitou.

Os relatos completos de Cris e Kyara você confere no vídeo abaixo:

Serviço

Imagem: Getty Images

No Brasil, ainda não existe em lei o crime de homofobia. Porém, são diversas as formas em que este preconceito pode se manifestar, se enquadrando então, em vários outros crimes, como injúria, calúnia, difamação, constrangimento ilegal, ameaça, lesão corporal e ato infracional, por exemplo.

  • Disque 100

Em casos de ser vítima ou testemunha de crimes como estes, procure o Ministério dos Direitos Humanos pelo Disque 100. O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados e também recebe denúncias anônimas. Além do telefone, as denúncias podem ser realizadas pelo aplicativo Proteja Brasil e pela Ouvidoria Online.

  • Casa Rosa

Idealizada pelo presidente Marcos Tavares e com apoio de Kyara Zaruty, a ONG de acolhimento à população LGBTI do DF, localizada em Sobradinho I, ainda está em processo de desenvolvimento e recebe doações de material de construção e/ou de vale compras para começar a funcionar. Para ajudar a Casa, você pode ligar no número (61)99220–3745 ou enviar um e-mail para fundacaocasarosa@gmail.com.

Revista Esquina

Na versão impressa da revista, uma taiwanesa trans conta sua trajetória de dificuldades, mudanças e aceitação. Sobre o assunto, confira, a seguir, a diferente história de reviravoltas e conquistas de Ming Liao Tao.

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