Vila Amaury, uma cidade submersa

Victoria Basques
Esquina On-line
Published in
8 min readNov 14, 2018

A 38 metros de profundidade, o Lago Paranoá esconde um lugar que um dia abrigou mais de 15 mil trabalhadores

imagem: Associação Candangos e Pioneiros de Brasília

Assim que Juscelino Kubitschek assumiu a presidência, se concretizou a ideia de mudara capital do litoral para o Planalto Central. Na época, o país estava em constante progresso, e com essa ideia acreditava-se que esse deslocamento, iria contribuir para ao avanço do centro do país também. Foi então que em 1957 deram início os trabalhos na futura Capital Federal. Naquele tempo, Brasília foi altamente divulgada, a notícia de participar da construção de uma cidade do zero, agradava os olhares dos “candangos”, como eram chamados os trabalhadores que migraram para a cidade.

Um dos principais fatores que influenciaram a vinda dessas pessoas foi, principalmente, a busca por melhores condições de vida, porque grande parte da população vivia em situação de extrema pobreza, e também nessa época o Nordeste passava por uma das maiores secas já enfrentadas na região. Em 1959, a capital chegou a receber 64 mil pessoas de acordo com o censo experimental do IBGE. (Confira o gráfico abaixo):

FONTE: IBGE

Grande parte das pessoas que vieram para a capital trabalhavam em algum setor de ocupação. Das 35.201 pessoas que exercciam atividades econômicas, 19.149 eram trabalhadores ligados a construção da cidade, principalmente os pedreiros, carpinteiros, marceneiros e serventes de pedreiro. Como mostra o gráfico abaixo:

FONTE: IBGE

Para ter um controle daqueles que que vieram procurar serviço, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), realizava um processo de triagem no Instituto de Imigração e Colonização (Inic), lá eles recebiam a carteira de identificação e eram designados as empresas de acordo com as especialidades de cada um. Os trabalhadores tinham diferentes perfis, mesmo que sem garantia de boas condições de vida, seu objetivo era trabalhar para construir Brasília, como explica o historiador e diretor do Arquivo Público do Distrito Federal, Elias Manoel da Silva.

“A maioria dos que vieram eram analfabetos, e os outros que sabiam ler eram contratados pela Novacap para coordenar. Uma coisa interessante é que muitos não tinham a noção de serviço. A exigência de terminar a capital nos parâmetros de JK não era normal.”

Os operários que trabalhavam nas quadras das Asas Norte e Sul, moravam nos alojamentos cedidos pelas empresas responsáveis pela construção, que servia apenas para o descanso, porque a jornada de trabalho ultrapassava às 8 horas. O salário era pago por hora trabalhada, então era comum eles acrescentarem a carga horária para aumentar o pagamento. Como não tinha lugar para todos, a população começou a criar vilarejos improvisados para servir de moradia, assim foram criadas a Vila Telebrasília, a Cidade Livre (atualmente o Núcleo Bandeirante), Vila Planalto, e também a Vila Amaury.

Amaury e sua esposa no baile de debutantes no Brasília Palace em 1958

A Vila Amaury, criada por um dos funcionários da Novacap, o Amaury Almeida, que na época conduzia o movimento pró-moradia, era o responsável por organizar a chegada dos novos migrantes e alojá-los nas cidades. Em 1959, perto da inauguração, havia um fluxo muito grande de pessoas no centro, e como a cidade estava perto de ser inaugurada, o funcionário formou a então vila, como explica a sua filha, Elizabeth Pinheiro.

“Quando estava perto da data da inauguração, o doutor Ernesto Silva pediu que meu pai removesse todos os candangos que moravam perto da área da inauguração. Ele sabendo que o Lago ia subir, fez uma vila próxima a esse local com a intenção de que quando o Lago subisse o governo se mobilizasse para arrumar um lugar para que esses candangos morassem”.

O vilarejo está localizado entre o Iate Clube e o clube Cota Mil, não tem ao certo registros do local exato em que a vila foi inundada. O espaço servia apenas para descanso, porque durante o dia, os operários se ocupavam na construção do Congresso Nacional e dos Ministérios. (veja fotos de como está a Vila no final desta reportagem)

“Meu pai escolheu essa área estrategicamente, pois sabia que a cota mil do Lago chegaria lá e, consequentemente as autoridades se veriam obrigadas a conseguir um lugar para evacuar os ocupantes da Vila. Tenho muito orgulho de meu pai. Era um homem sensível, idealista e sonhador”, conta sua outra filha Teresinha Almeida.

(Documentário com relatos dos trabalhadores que participaram da construção de Brasília) :

Ex-moradores da Vila Amaury

Quem presenciou o avanço da Vila Amaury, foi o aposentado Jales Ramos de 72 anos. Ele veio ainda criança para a capital, fugido de casa aos 12 anos após brigar com o pai. Saiu de Monte Carmelo em Minas Gerais, para procurar serviço na capital. Morou no vilarejo ainda jovem, ele recorda como era o local.

“Uma das lembranças que tenho é ver as madeiras das casas coloridas, porque quando eles colocavam a roupa para secar a cor do tecido escorria e a madeira absorvia a cor da roupa e ficava colorida.”

Quando o mineiro Miguel Machado de 80 anos chegou em Brasília, seu desejo era planejar uma nova vida cheia de esperança e conquistas para a família. No começo veio sozinho aos 18 anos, deixando os pais e os irmãos no interior de Minas Gerais. Trabalhou em várias empresas de construção, sua especialidade era carpintaria e marcenaria, trabalhou nos 11 blocos da 107 sul produzindo portas, mesas e bancadas feitas de madeira. Assim que conseguiu emprego em Brasília, sua família veio morar na Vila Amaury. Miguel conta que o lugar era um amontoado de pessoas.

“A Vila era um aglomerado de barracos feitos de restos de madeira usadas nas obras. Lá tinhas ruas que eram becos e que não dava para passar nenhum carro. Mas ali tinha comércio, tinha uma sala de cinema, que era um barracão de madeira e o piso era de chão batido, era um lugar simples mesmo”.

Desde o seu desenvolvimento, os moradores da Vila foram informados pelos engenheiros de que a barragem do Rio Paranoá estava em processo de construção e que um dia eles teriam que sair, pois o local seria inundada pelo futuro Lago. Com isso, o governo começou a construir as primeiras cidades satélites, e aqueles que saíssem iriam ganhar um lote com escritura na cidade em que desejasse morar: Sobradinho, Taguatinga ou Gama.

Muitos não acreditaram que um dia o lago iria encher, os anúncios feitos pela Novacap para todos retirarem seus pertences não os intimidaram, e grande parte da população se recusou a sair, chegou ao ponto das águas invadirem os barracos de madeira, como foi o caso do ex morador Cely Nogueira. “No início a gente não sabia que o Lago ia encher, e um dos que não acreditavam que não encheria foi meu pai, aí teve um dia que a água foi enchendo e nós levantamos um dia de manha a água já estava debaixo da cama”, relembra o aposentado.

imagem: Arquivo Público-DF

Quando abriram as comportas na comemoração do aniversário de JK, em 12 de setembro de 1959, a água começou a invadir o solo inundando uma parte da história de Brasília. O Lago encheu em apenas um ano atingindo a sua cota mil. Aqueles que saíram às pressas, deixaram para trás o que não conseguiram levar. Hoje a Vila Amaury se tornou um patrimônio submerso que guardam grandes histórias.

(Confira o vídeo de mergulhadores no fundo do Lago Paranoá):

Vídeo: Brasília Radical

Museu submerso

Passaram-se 59 anos desde a criação da Vila Amaury, o local submerso pelo Lago Paranoá, guarda segredos que só quem viveu lá sabe. Olhando de cima, poucos imaginam que milhares de pessoas viveram no que hoje é o fundo do Lago. Suas águas esverdeadas escondem milhares de histórias e vestígios que alimentam a curiosidade dos exploradores.

Um dos que tiveram o interesse em descobrir as profundezas do Lago Paranoá, foi o fotojornalista e também mergulhador Luiz Alberto Cortes, mais conhecido como Beto Barata, que em 2010 produziu um trabalho fotográfico chamado ‘Brasília Submersa’ sobre o Lago Paranoá. Com isso, ele resgatou a memória da Vila Amaury e mostrou histórias pouco conhecida sobre a criação da barragem e também da construção de Brasília.

Para realizar o trabalho, Beto Barata teve que se capacitar para descer no lago, por isso fez um curso para mergulhar com técnicos e instrutores. “Foram no total mais de 100 mergulhos no Lago”.

O mergulhador descreve alguns dos objetos que encontrou durante a operação. “A Vila Amaury era conhecida como sacolândia, a maioria dos barracos era feito de saco de cimento, o que foi largado para trás e a água dissolveu, o que dava de ser aproveitado eles tiraram para construir em outro lugar.

(Veja a galeria de fotos dos objetos encontrados na Vila Amaury): imagens: Beto Barata

imagens: BETO BARATA

“Os objetos da Vila Amaury hoje já não devem estar mais lá, porque a galera que mergulha tira, às vezes não é nem por maldade, mas por desconhecimento mesmo. O que seria legal é que fizessem um trabalho de conscientização já que tiraram esses objetos do fundo do Lago e fizessem um museu da Vila Amaury, porque quando Brasília tiver 100 anos por aí, vai ser as nossas ruínas, a história da nossa identidade, então o trabalho de conscientização já tinha que estar sendo feito”.

Confira a reportagem “Lembranças Submersas”, da Revista Esquina:

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