Revista Poleiro
Esquinas Cariocas
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9 min readMar 17, 2015

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Por João Flores

Se algum dia, ainda que porventura, me questionassem em relação aos grandes amores que tive em vida, é provável que dois ou três deles dividissem tamanho afeto com algumas esquinas. Percebe o que eu digo? Antes que te tomes de surpresa, eu continuo e peço que guarde tuas exclamações para o final desta conversa.

Presta bem atenção. Há certas coisas nessa vida que nascem simultaneamente e, de tal forma agregadas, que são como uma única ideia. É algo impossível de se desvincular, eu diria, se me permite abusar um pouco da filosofia. São como gêmeos, talvez. Pessoas diferentes que compartilham uma identidade física, material e, às vezes, unicamente estética. Porém, com efeito, compartilham, e não há nada que possa ser feito em relação a isso. Você pode operar o nariz, ou, quem sabe, de maneira esdrúxula raspar a cabeça, mas quando um juízo já fora concebido, uma ideia de identidade mútua já fora formulada, não há mais o que discutir sobre.

Pois bem, se a analogia um tanto quanto absurda serviu de alguma coisa, consegues então perceber que me interessava anteriormente tratar de uma relação de vínculo? Se é negativa sua resposta, espero que com isso possa ter lhe esclarecido. Prosseguindo, devo dizer que a nenhum dos meus amores entreguei-me de forma singular. A essa altura deves entender que não trato aqui de uma questão de adultério, ao menos não no sentido frio da palavra. Muito menos ainda, é bom ressaltar, que veio a se tratar de uma questão de arrogância ou futilidade. Não vá por esse caminho. Pense na ideia de indiscernibilidade que ajudara a formular. Com isso em mente, lhe digo que amei sim, em potência e das formas mais variadas. Porém, tal amor veio acompanhado de sobrenomes pomposos, da lembrança de cidadãos ilustres, da exaltação do local onde tudo foi concebido. Amei, incondicionalmente, Clarisse, Dolores, Amélia e Graça. No entanto, não dei-me somente a elas. Amei também a Copacabana.

Foto: O Rio de Antigamente

Penso que, em juventude, as pessoas tendem a encarar um processo de mudança de maneira mais aberta, serena. Há algo relacionado a noção de si e da realidade que é metamórfico. Algo análogo ao crescimento, a formação de um ser, completo em significado. Talvez, por isso, não tenha dado a devida importância ao fato de meu pai trazer a família para morar na região de Copacabana. Aquilo que fora um areal anteriormente, agora encontrava-se em constante processo de urbanização. Chegamos junto com outras famílias e ocupamos a área gradativamente. Seu José, meu pai, ganhava a vida removendo pedras. Era seu deleite definir-se dessa forma. Dizia ser um besouro, em minha infância. Removeria o que fosse preciso do caminho, por qualquer motivo fosse, se isso viesse a me chatear. Era construtor. Recebera a terra como presente por seu empenho nas obras da região.

Não era uma casa garbosa, mas guardava lá seus luxos. Da localidade, talvez fosse uma das menos extravagantes. Contudo, seus poucos cômodos satisfaziam a família e, até a morte de meu pai, estavam sempre repletos de conhecidos e familiares. Nunca fui um rapaz de muitas amizades. Vez ou outra, me pegava em um debate político com um outro desconhecido, enquanto lia o jornal nas imediações da Praça Cardeal Arcorverde. Porém, era esse o ápice de minha interação social além do perímetro familiar. Gostava de circular pelo quarteirão do suntuoso Copacabana Palace. A imponência do edifício me encantava. Sua fachada alva e sóbria, suas janelas a se estenderem pelas infinitas fileiras de blocos pálidos e opacos. O contraste perfeito entre a maravilha da técnica humana e a simplicidade da criação divina. Em minhas voltas pela Avenida Atlântica, costumava levar comigo um pequeno caderno em brochura, ao qual grafava retas paralelas e perpendiculares, questionando-me sobre possíveis alterações urbanísticas a serem realizadas naquilo que cruzava meu campo de visão. Em meio a um devaneio, enquanto fitava o Forte de Copacabana e ponderava sobre o platô descrito por Debret, assim como ao tamanho da audácia de ali alocar um obelisco em homenagem ao levante de vinte e dois, me veio Clarisse.

De pele nacarada e cabelo preso em coque, era uma jovem de postura elegante e um olhar humilde. Rodeou-me discretamente e, então, com um meigo suspiro daqueles que indicam o súbito entendimento de algo, murmurou:

- Deveras ousado para os tempos atuais, arquiteto.

Era tradutora na Agência Nacional, um órgão de notícias relacionado ao governo. Seus traços indicavam algo de eslavo em seus genes. Analisara meus rabiscos um a um, como se de fato fosse uma crítica de arte ou especialista em arquitetura. Estudava a precisão de minha grafia e corria com frequência os olhos das cédulas para o arquétipo natural. De fato, era ucraniana. Viera de Pernambuco, onde uma vez se estabeleceram seus pais. Em sua fala firme e atitude, me enxerguei pela primeira vez nos olhos de alguém. No serpentear das pedras portuguesas, entrei em transe. Na dormência do meu corpo, identifiquei os primeiros sinais daquilo que em toda minha existência só viria a sentir 3 vezes mais: o estado de graça e completude, o fascínio do acaso, o significar-se em alguém.

Foto: O Rio de Antigamente

Foi na orla da praia que estreitamos relações. Mantive em segredo o que sentia e deixei amadurecer. Era primavera, os fins de tarde eram alaranjados. A sombra de um casal decidira se fixar nas pedras que ondulavam por toda a extensão do bairro. Me vira preso a este momento, a esta situação. Um ponto de encontro, uma certeza e um quebra-cabeças. Como então revelar à Clarisse o que guardara em silêncio desde o vislumbre do delicado contorno de seu rosto. Como codificar a ela aquilo que era tempestuoso e desconhecido até para mim? Não era poeta, não saberia improvisar ou cantar coisa qualquer que mostrasse a ela e, se preciso fosse, convencê-la a entregar-se ao jovem projetista da orla de Copacabana.

Ao fim da carta ilustrada, uma declaração. Nos olhos da jovem ucraniana, a surpresa e a incerteza. Dissera Clarisse estar enamorada por um de seus colegas, na Agência Nacional. Uma paixão castrada, pois seu amor jamais teria para ela os mesmos olhos com os quais eu a olhara. Amargava um sentimento não correspondido, uma paixão que jamais seria. Entendia meu apelo, mas por mim nutria somente o carinho, conquistado por nossos encontros e pela comunhão de nossas ideias. Com ternura e um certo despreparo, Clarisse beijou-me a testa e partiu. Levou consigo a declaração, a companhia mais tenra que já desfrutara e, ao que parecera, o meu sossego. Todavia, deixara comigo Copacabana. E a ela, entreguei minha desilusão.

No tempo que se seguiu, encontrara dificuldade em administrar tamanha angústia. As atividades cotidianas desbotaram, o mínimo era o suficiente para tirar-me do sério. Os polos de minha consciência se inverteram e agora caminhava contra tudo que pensara ser racional. As noites eram longas, sórdidas. Era possível me encontrar no Cangaceiro, sentado sempre ao bar. Dos garçons, ganhei a amizade, porém não a compaixão. Me serviam como empregados que eram e não se convalesciam ao contemplarem minha carcaça se arrastar para fora das imediações do estabelecimento, às sete horas da manhã.

Foi a época em que meu pai se fora. A família, embora emocionalmente desestabilizada, conseguira se manter. Graças ao Besouro, tínhamos reservas largas, uma zona confortável de manobra. Durante muitos invernos pedra alguma viria a se postar em nosso caminho. No entanto, me via em frangalhos. A bebida levara-me a concentração de outros dias. A inspiração, o traço limpo, a coesão. O zelo, mantinha somente pelos estudos. Vivia pela bebida e pela arquitetura. Era Copacabana minha paixão, meu reduto. Seu relevo e seus bares me tiravam o peso da realidade.

Foto: O Rio de Antigamente

Certa vez, desnorteado, nauseado, dei por mim em um pequeno quarto. Era quente, úmido. O cheiro do mofo irritava minhas vias. O salpicado negro a turvar o creme das paredes. Aos meus pés, estava sentada Amélia. Tudo o que vira a saber dela é que trabalhava em uma loja de tecidos durante o dia, algo que deveria ser o suficiente para sustentar Marinho, seu filho. Era solteira, mais velha. Tivera Mario como um amor de juventude, que a muito partira, temendo as responsabilidades de se engravidar uma moça fora da sagrada relação matrimonial. Era desgostosa da vida. Simples, ordinária, em nada chamava a atenção. Tudo em si era banal. Voltando à noite da casa de uma conhecida, dissera a mim, viu aquele vagabundo, de vestes boas porém sujas e manchadas de vômito, a pernoitar na sarjeta. Trouxera a carcaça do nobre vagabundo à pensão onde morava e ali trocara sua roupa, com zelo o limpara, para que então pudesse repousar junto a cama de Marinho.

O pequeno encontrava-se internado, tinha sérias crises asmáticas. A inflamação dos brônquios levava dele a infância e, de sua mãe, todo o tempero e capital. Nos problemas de Amélia, encontrei-me. Em sua humanidade e fragilidade, novamente me vi seguro. Um caminho por onde poderia seguir. Na época, relacionava-me com Dolores. A cantora me introduzira a viela onde se seguiam os edifícios do número 21 ao 37, na Rua Duvivier. Ao Beco da Garrafas, afeiçoei-me, assim como à boêmia. Seu alcoolismo e talento ressoaram em mim. Contudo, Dolores, de batismo, Adileia, era mulher de muitos homens. Amá-la seria estar disposto a dividi-la com suas desventuras, assim como, com Copacabana.

Passei então a repartir-me entre Dolores e Amélia. Durante o dia, me entregava aos cuidados de Amélia. Uma vez caída a noite, ia à forra com Dolores. Em segundo plano, Copacabana, cortesã astuta e experiente, testemunhava tudo, ávida pelo momento certo a intervir. Dolores sabia de Amélia, porém, Amélia jamais desconfiaria da cantora. O triângulo se seguiu até o fim do verão, onde, certa noite, Amélia, então flertando com Durval, violonista do Little Club, me flagrara aos beijos com Dolores. Amélia, empregada em uma loja de tecidos, era também prostituta. O choque entre nossas vidas duplas rompeu a relação e ruiu com o sentimento. Em complemento à minha sorte, vi Dolores partir para a Europa, onde, tempos depois, fui saber, morrera de infarto, fortuna de seus excessos. Copacabana, amante ciumenta, possessiva, me levara três amores e agora tinha-me só para ela.

Sensibilizado, porém, endurecido pelo tempo, tornei-me contemplativo. Me interessavam as questões sociais e filosóficas. Passei a versar sobre as coisas do coração. Me formei e saí de casa. Humilde, cultivei amizades que me levaram até Ipanema. A solitude trouxe-me um violão. Graça, por sua vez, veio a calcar nisso tudo, inspiração. Loira, da pele queimada de sol e juventude no olhar, passava sorrindo ao presenciar os deslumbrados rapazes, enamorados por seu brilho. Eram poucos os dias em que não me deslocava da residência, nas proximidades do que hoje é o Bairro do Peixoto, para admirar o balé da jovem pelas ruas do nobre povoado. Paixão platônica, Graça era mais uma musa. Encanto que guardei em meu peito e minhas letras. Copacabana jamais me permitiria outro amor, ainda mais um que fosse oriundo do distrito ao lado.

Das vielas do coração da Zona Sul carioca, guardo as melhores lembranças de minha vida. Subterfúgio, morada, escola. Copacabana, hoje mais matriarca do que amante, continua zelosa por mim. Dos amores que tive em vida, o mais sincero, ainda que caustico e custoso. Copacabana ainda me nutre, em matrimônio jurei permanecer em si até o fim dos meus dias. Que sigas caótica, ardilosa e imprudente. Pois é onde mora teu fascínio, teu deslumbre. E, acima de tudo, onde mora meu conforto.

Esquinas Cariocas é uma publicação especial da Revista Poleiro

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