Revista Poleiro
Esquinas Cariocas
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3 min readMar 3, 2015

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Por Octavio Peral

Ainda não havia azul no céu. Só a revoada de pássaros cortando a madrugada fria que pelas mãos me acordava. Sentir o primeiro cheiro da manhã. As padarias já a assar os pães, o agitar silencioso das mães a tirar os filhos das camas. Há 20 anos é verão. Há 20 anos o chacoalhar das árvores sussurra-me que estou seguro. As velhas caras conhecidas nas filas. O velho cheiro de flor das ruas, o silêncio da madrugada quente a açoitar minhas amendoeiras. O uniforme passado e o cabelo partido em dois. A lancheira que só me alimenta de lembranças. Tudo passa. Menos as ruas, os cheiros, os gostos. Tudo muda. E sair de casa é voltar no tempo. O céu da vila. O céu e as estrelas do Méier. Conhecer a luz de um lugar como a palma da mão. Estar em casa. Estar na rua. Estar são e salvo. As janelas estreitas e as cabeças, velhas conhecidas, dependuradas para fora a cuidar de tudo. Das nossas vidas. Das nossas saúdes. Histórias tão conhecidas que eu poderia tê-las vivido. Velhos conhecidos dos botequins a borbulhar cerveja estômago adentro. Rostos amargos. Sofridos. A velha história de vencer na vida e ser melhor do que uns e pior do que outros.

Ainda não havia azul no céu. E eu sonhava milhares de coisas infantis dentro das maletas de lápis de cor. As marcas do chão claras em mim, como se fossem rugas da minha pele. Conheço-as todas. E onde todos os buracos estão. Conheço quem fique na porta das casas em cadeiras de praia. Dando boa tarde pra quem passa. Vendo as modas. Vendo o nada passar. Rostos felizes e marcados. Pelo trabalho, pela dor, pela tristeza. O universo fechado entre uma linha do trem e morros.

Ainda não havia azul no céu. A sonolência a me adormecer em cada pedaço de meio fio. Meu corpo a mergulhar entre as cabeças, entre tantas flores e amendoeiras. A simplicidade do banho de mangueira, do joelho ralado, do mertiolate raivoso. A vida serena e entardecida. O azul que não existe no céu. A noite que abraça a todos, os gritos de “viva a luz” e a sorrateira virtude de sonhar acordado. As melhores nuvens para se imaginar coisas estão no céu do Méier. Daquelas que mudam de forma o tempo todo. Enquanto as amendoeiras chovem suas folhas marrons nas calçadas. E as pessoas falam de suas vidas umas pras outras. E os vizinhos são mais que vizinhos. E o segurança da rua discutindo futebol com o solteirão que compra o Lance todo dia. E o mercadinho que é sempre mais caro, mas mais cômodo nas ladeiras angulosas de paralelepípedo seco. A gritaria dos feirantes a anunciar a fruta do dia. As balas de coco a derreter na língua afiada. O suor molhando todas as faces. E o azul finalmente a radiar sua violenta beleza entre nossas retinas despreparadas. Nossas retinas cheias de planos e ideias mirabolantes.

O cheiro de estar em casa é a flor da noite, jasmim que inunda os pulmões. Méier é estar debaixo de uma amendoeira. E pensar que tudo é simples. Nada possui a complexidade suficiente para preocupar. As ruas estão sempre ali, de qualquer forma. Dar bom dia aos desconhecidos e puxar papo na fila do banco. Ajudar velhinhas que nem precisam de ajuda. Adormecer enquanto o azul não aparece no céu. Porque depois disso, o que resta é deixar os olhos se acostumarem com a claridade. Deixar os olhos se acostumarem com o asfalto quente e sair de chinelo e sem camisa para comprar o cigarro de toda hora.

Esquinas Cariocas é uma publicação especial da Revista Poleiro

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