Revista Poleiro
Esquinas Cariocas
Published in
3 min readApr 5, 2015

--

Por Romulo Moraes

O Rio amanhece pelo Humaitá: ele é sua janela constantemente aberta. Bairro de passagem, de uma rua só, e tão bairro de passagem que talvez fosse melhor você só ler o texto sobre Botafogo de uma vez e esquecer esse negócio de Humaitá. Às vezes é bom que seja assim, porque dessa forma ele permanece sutil, permanece discreto aos olhos distraídos e às almas desinteressadas. Assim ele não se esgota por completo de primeira e pode continuar um mistério, quer dizer, uma aventura e um chamado para seu descobrimento.

Esse seu charme secreto não reside tanto na ausência de edifícios megazórdicos em suas transversais quase-sem-saída que escorrem do Cristo, nem em uma efemeridade que talvez fosse parecer oficial, um esvaecer progressivo, como aqueles que os bairros de passagem costumam evocar. O que realmente faz dele um bairro próprio não é nada disso, é uma coisa bem mais míuda, imperceptível para quem só está de passagem: são seus rostos marcantes, as faces reconhecíveis, suas sombras humanas inteiramente tranquilas projetando-se sobre cada esquina e cravando em cada banquinho uma história própria. São os mesmos vagabundos de sempre bebendo no Boa Pinga, os mesmos fantasmas comendo coxinha no Fornalha, os mesmos senhores jogando xadrez na praça — esses do tipo que eu quero (e vou) ser.

Sempre as mesmas pessoas nos fascinam aqui: as que não estão de passagem. Aquelas que perigosamente esqueceram de sua função de bairro-ponte e o tornaram bairro-castelo, porque um dia perceberam (ou talvez nem tenham percebido, mas passaram a viver como se tivessem) que a ordinariedade, aos poucos, acabara por descortinar o bairro para si. Perceberam que o Humaitá é circunscrito por um muro intangível, alto e inescalável, que lhe convida para desvendá-lo, ainda que só o convívio perpetuado, só o vivenciar autêntico pode torná-lo pelo menos ultrapassável. E quando se supera o muro, se penetra num universo protegido e mágico (e não, não estou falando só da Casa do Mago), se penetra numa unidade pessoalizada, em sua bem-aventurada intimidade de campanário medieval. O Humaitá é um mundo fantástico, um mundo seu, como uma Combray proustiana, sempre envolvido e intoxicado por sua própria aura faminta. Com seu corpo urbano deitado do Rebouças ao Largo dos Leões, ele imprime, em todos os que o habitam e que o permitem habitá-los também, uma marca precisa.

Espremido entre as montanhas descomunais e sua própria invisibilidade descomunal, ele é um feudo-vale guardado no fundo da bacia suave de sua geografia, bacia repleta de um líquido estelar de céu, viscoso, morno e eternamente familiar, que nos preenche os poros por completo. Com suficiente compenetração e uma paciência imperativa, é possível ouvir o grito dos morros, seus sibilares, uns arrotos fúnebres e trêmulos. Eles tentam se comunicar com os humaitanos com suas vozes baritônicas — em nenhum outro lugar do mundo os morros se abrem e se desdobram com tamanha facilidade, com tamanha reciprocidade, esperando ser compreendidos. Parecem se movimentar na dança mais lenta do mundo, a dança densa e profunda dos tempos.

A fauna também sente os urros dos morros: empertigados, carnavalescos, os pombos se dependuram nos fios de cobre e observam. Escutam atentos o Humaitá falar. Coçam-se, bicando a cerâmica de sua penugem, beliscando com as garras frágeis as armaduras monocromáticas, seus felpos se misturam na medida em que eles se apinham, formando um tecido homogêneo e orgânico, numa marcha meio caquética mas extremamente sincera, até boba. Então os pombos pensam em não-sei-o-que, levantam voo, mergulham nas nuvens e explodem, catatônicos, como em estado de supernova.

O Humaitá evita ser simpático ou democrático demais, permanece costurado a sua estrutura provinciana, camuflado ali, tentando ser nobre, ou pelo menos fingindo ser nobre. Ele se esconde dos espiritualmente preguiçosos e incapazes, mas se rende para os obstinados e para os serenos, para os de essência compatível com os sentimentos aristocráticos que se entremeiam por suas ruas, seus bares e suas floriculturas.

Esquinas Cariocas é uma publicação especial da Revista Poleiro

Curta a Revista Poleiro no Facebook // Siga a Poleiro no Twitter // Saiba mais
Gostou? Faça login no Medium com seu Twitter ou Facebook e recomende o texto!

--

--