Revista Poleiro
Esquinas Cariocas
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3 min readMar 16, 2015

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Por Karla Corrêa

Havia morado a vida inteira naquela casa azul. Aquele bairro havia sido meu berço: as ruas não ladrilhavam como diamantes, mas foram palco dos meus primeiros passos para conhecer o mundo enquanto um universo de possibilidades e escolhas. E justamente ali, naquela casa azul, naquele morro onde eu tinha uma vista panorâmica do meu amado Rio de Janeiro — onde o Cristo nos abençoava tão de longe, porém muitas vezes julgávamos amargurados que ele havia nos esquecido –, o lugar palco de muitos sorrisos e muitos choros banhados em suor, eu teria que dar um adeus a minhas antigas memórias. Não que as memórias fossem de todo ruins, pelo contrário! As memórias eram excelentes: nas paredes estavam meus primeiros traçados, no piso estavam meus primeiros passos e, no quintal, as primeiras quedas. A hora do futuro digno que me falavam há tanto tempo havia chegado: era a hora do adeus, da mudança e de abraçar o novo.

Mas eu confesso: a mudança me inundou de saudades. Foi difícil reconhecer o novo ambiente que eu poderia chamar de casa, reconhecer meu novo trajeto, me acostumar a novos olhares e lugares. Eu estava perdida em caminhos que antes sequer sabia da existência. O começo foi um sacrifício diário: horas demais nos ônibus acostumando meus olhos ao novo verde, horas de menos dormindo e sonhando com meu antigo habitual verde. No entanto, não me arrependo de nada: desde o fel que foi a minha chegada, ao que parecia ser recebida como um visitante incômodo na mais alta hora da madrugada, ao mel que foi ser abraçada e ter melhores condições de vida naquele lugarzinho tão desconhecido e isolado do meu famosíssimo e amado Rio de Janeiro.

Hoje paro e olho a paisagem do meu quarto — e último — andar e reconheço o meu arredor como minha casa, vejo as mesmas pessoas madrugando para lutar por um lugar vazio no trem rumo ao trabalho. Os idosos estão logo cedo no bar vendo a hora passar, observando a rotina corrida, e posso até presumir que estão a rir de nossa pressa toda: o ônibus pode esperar, a vida pode passar, mas em hipótese alguma se deve deixar a cerveja esfriar. As crianças que estudam durante a manhã calma e ficam durante a tarde em todo o espaço inutilizado soltando suas pipas colorindo o céu azulado; os rostos sorridentes em meio ao sol escaldante me fazem pensar que, talvez, eu deva experimentar aquilo algum dia — deve ser realmente divertido. E eu só sei que a noite cai quando os trabalhadores chegam exaustos do trabalho correndo para chegar a tempo da novela das oito, e os adolescentes, liberados da atenção dos pais, correm para invadir as ruas com seus skates e bicicletas modernas. Eis porque aqui a noite sempre se torna tão jovial.

E cá estou eu, no momento mais quieto da noite, quando abro a janela e posso tranquilamente observar as estrelas. A sensação de olhar exatamente para as mesmas estrelas que olhava anos atrás, com um olhar totalmente esperançoso e incerto para o futuro, quando tudo era completamente diferente, é única e me acalma. Hoje, mesmo num lugar tão longínquo como as estrelas, estou onde deveria estar. As ruas são silenciosas, os verdes que dão vida a paisagem composta por tantos prédios residenciais e as montanhas, que um dia quero conhecer, compõem meu lar. E é quando a ficha cai: hoje, sem dúvidas, sinto-me abraçada por ti, Senador Camará.

Esquinas Cariocas é uma publicação especial da Revista Poleiro

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