É mais fácil dizer adeus

Laura Poffo
Essentia
Published in
10 min readJun 11, 2020

[Contém spoilers]

Sou uma daquelas pessoas que precisa terminar um livro, filme ou uma série a qualquer custo. Independentemente dos meus gostos ou das minhas intuições, vou até o final para dar todas as chances de a história me surpreender e me convencer do contrário. Infelizmente, não foi o caso com “Como eu era antes de você”.

A ficção

A sinopse mostra um enredo familiar de romances: “Will é um jovem rico e bem sucedido que leva uma vida repleta de conquistas e emoções até ser atingido por uma moto. O acidente o torna tetraplégico e o obriga a permanecer em uma cadeira de rodas. Para a preocupação de seus pais, a situação o torna depressivo e extremamente cínico. E é nesse cenário que Louisa Clark é contratada para cuidar de Will. De origem modesta, com dificuldades financeiras e sem grandes aspirações, ela faz o possível para melhorar o estado de espírito de Will e, aos poucos, acaba se envolvendo com ele”.

Confiante nessa premissa, comecei a minha leitura. O choque de realidades é claro quando Louisa sai de sua casa turbulenta — que inclui os pais, a irmã, o sobrinho pequeno e um avô que exige cuidados desde um derrame recente — para a mansão fria e vazia de Will, habitada somente por ele, seus pais e uma enfermeira. Na maneira como o ambiente foi descrito pela primeira vez, Will parecia um cadáver abandonado em uma sala de autópsia, com pessoas à sua volta esperando qualquer sopro de vida que ainda poderia surgir.

À medida que Louisa se situava nessa realidade, era divertido ver o contraste entre a sua personalidade borbulhante e o sarcasmo puro de Will, além de acompanhar o crescimento da relação dos dois. Enquanto ela conhecia um lado mais solitário da vida, ele começava a resgatar cores no seu dia a dia. Era o encontro necessário entre o afeto e a frieza, o encaixe entre peças que precisam se unir para serem completas.

Contudo, minha bolha de encantamento estourou quando Will, mesmo após vários momentos ternos e delicados com Louisa, revela que tem a intenção de acabar com a sua vida em um centro de suicídio assistido na Suíça. Ela desmorona, sente o relógio batendo e declara todo seu amor por Will, mas ele segue resoluto em sua decisão. Afinal, ele não pode aceitar “seu novo eu”. Louisa, então, percebe que sua contratação foi a última carta dos pais de Will para que ele desistisse dos seus planos. Ainda que relutante de início, ela aceita seu lugar nas sombras junto a eles, esperando a confirmação do óbito de Will na sala de espera do centro.

Ao final, temos Louisa como uma mulher “livre” e mais decidida, com um futuro “promissor” pela frente após ler uma carta que Will deixou para ela com uma soma de dinheiro. O que poderia ter sido uma grande oportunidade de a protagonista usar suas dores pessoais para contornar uma injustiça simplesmente se esvaiu com um silêncio resignado de sua parte. Tudo que Louisa estava construindo com Will caiu por terra e ficou no passado, dando a impressão de se tornar uma memória sem muita profundidade e relação com sua própria vida.

Quando terminei de ler, devorando as últimas páginas à espera de alguma reviravolta, me senti derrotada. A sensação foi que alguém tinha arrancado o livro das minhas mãos e o rasgado na minha frente. Sentada na minha cama, eu enxergava aquilo que sentia: nada. O mesmo vazio de quando fazemos algo a contragosto ou pela metade.

Tentei buscar respostas da própria autora do livro, mas me deparei com mais uma porta na cara. Para a escritora Jojo Moyers, a principal mensagem do seu trabalho é apenas uma: “não julgue”. Segundo a autora, ninguém tem o direito de julgar a vida do outro, pois cada um possui sua própria história e motivação. Assim, devemos “buscar a empatia e a gentileza” diante das decisões do próximo.

Mas onde estão a gentileza e a empatia em deixar alguém morrer por não se achar completo? Que valor tem a postura de Louisa em se silenciar diante de todo amor que descobriu em Will, especialmente quando ele não conseguia enxergar esse potencial em si mesmo? Como deixar alguém ir por se considerar inútil, sem que tenha ciência de toda sua capacidade de transformar o mundo, como qualquer outra pessoa?

Apesar de a obra ter ganhado repercussão tanto em livro como em filme há alguns anos, ela ainda traduz bem como entendemos o valor da vida. Afinal, o cenário do mundo atual se tornou mais preocupante do que a ficção.

A realidade

Há alguns meses, de forma silenciosa, todos os cinco projetos de eutanásia em Portugal foram aprovados em nível nacional. As leis incluem morte assistida aos portugueses e qualquer residente do país, maiores de idade com doenças incuráveis e em fase de sofrimento duradouro e insuportável.

A nova legislação ainda define que o paciente terá que fazer o pedido de forma consciente e lúcida, com exceção para pessoas com transtornos mentais. Ainda que cada caso deva ser avaliado por dois médicos, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros de Portugal se posicionaram contrárias à descriminalização. Ou seja, os mesmos profissionais que serão responsáveis pela prática da eutanásia não são a favor da medida.

De acordo com Ana Rita Cavac, presidente da Ordem dos Enfermeiros, Portugal não possui uma rede de cuidados paliativos como os outros países de morte assistida. Isso inclui a falta de vagas para aqueles que buscam tratamento paliativo, além de equipamentos domiciliários. Assim, ela afirma que “há um grande risco de o paciente tomar uma decisão por não ter tido condições de lidar com a doença da melhor maneira, sem sentir dor”. Por não garantir acesso a um tratamento prévio de quadros graves de saúde, o país abre precedente para decisões de eutanásia tomadas de forma superficial e precipitada. São vidas que se perdem pela redução de custos governamentais com tratamentos a longo prazo.

Nesse cenário, os cuidados paliativos devem ajudar no momento de morrer — mas não de ajudar a morrer. Também não se pode forçar o prolongamento doentio da vida, chamado de “obstinação terapêutica”. Ou seja, ao mesmo tempo em que não se pode tirar a vida, não é lícito forçar sua continuidade artificial quando a morte é um quadro inevitável. É preciso preservar sempre a dignidade humana, respeitando seu curso natural de vida e morte.

A diferença é clara: não se trata de provocar ou acelerar a morte, mas sim de aliviar o sofrimento do paciente quando não existem mais alternativas viáveis. Os próprios médicos costumam observar que os pedidos de morte são a expressão máxima do instinto de segurança do ser humano, especialmente diante de sofrimentos insuportáveis. Por isso, sempre é necessário se perguntar: até que ponto o paciente está livre e consciente no seu pedido ativo por eutanásia? Aquele pedido, afinal, é profundo ou momentâneo? A pessoa em sofrimento tem uma visão ampla do que pode adotar como tratamento?

País pioneiro na eutanásia, a Holanda atualmente avalia a distribuição de um comprimido letal a idosos a partir de 70 anos, sem doença terminal, mas que afirmam estar “fartos de viver”. Lá, tanto a eutanásia como o suicídio assistido são permitidos para pessoas com doença incurável. Com a prática legalizada desde 2002, a eutanásia pode ser pedida, inclusive, por menores de idade com autorização dos pais e, a partir dos 16 anos, sem consentimento. Somente em 2018, o país registrou 6.126 eutanásias.

Aqui não se exclui o reconhecimento do sofrimento, que está presente em muitos desses casos. Pelo contrário: é nesse cenário de maior dor e angústia que devem se aplicar a medicina paliativa e o acompanhamento digno daqueles que se encontram no fim de suas vidas. A vida deve ser sempre celebrada e protegida. E quando a morte for inevitável, essa mesma vida deve ser honrada por recursos lícitos que aliviem o sofrimento. Mas a morte jamais deve ser procurada como fim. Esse resultado representaria uma derrota ainda mais dolorosa em uma batalha já repleta de dificuldades e sofrimentos.

É muito comum que aqueles que peçam eutanásia tenham como justificativa serem “fardos” para outras pessoas. Nessa lógica, o “direito à morte” se confunde com um “dever com os familiares”, algo que simplesmente não existe. Podemos ver que Will, de “Como eu era antes de você”, viveu cada segundo de sua vida após o acidente regido por esse raciocínio. Para ele, sua vida acabou a partir do momento que não era capaz de ser autônomo e livre para voltar aos hábitos de sua vida antiga.

Agora precisamos nos perguntar: Will teve sua situação de desespero verdadeiramente ouvida por seus pais e por profissionais íntegros? Ele recebeu a devida ajuda em seu momento de angústia? Não. Ele simplesmente foi deixado afundar em pensamentos depressivos e suicidas, sem que alguém de fato fizesse alguma intervenção e resgatasse todo o seu valor como pessoa.

Qualquer pessoa com deficiência, saúde fragilizada ou sofrimento insuportável possui valor e dignidade absolutos, sem condicionantes ou agravantes. A partir do momento em que enviesamos essa premissa, qualquer chancela é dada para anular a vida daqueles mais frágeis aos olhos da sociedade.

Portanto, há limites intransponíveis no domínio do Homem sobre o seu próprio corpo, delineados pelo seu próprio bem. Limites que a nenhum homem, nenhuma autoridade ou entidade são lícitos de serem transgredidos. Esses mesmos limites não podem ser determinados senão pelo devido respeito à integridade do organismo humano e de suas funções naturais, preservando sua totalidade.

A verdade

Atualmente, vivemos uma faca de dois gumes: viva tudo ou seja um nada. A realidade da eutanásia nos mostra que a sociedade não compreende a vida de quem possui deficiências. Se você é cadeirante, tetraplégico ou tem qualquer outra condição, já considerado como uma “meia vida”, alguém que não vive por inteiro.

Nossa cultura idolatra corpos perfeitos. Idealizamos a saúde física, juntamente com a atratividade física, sempre medida por critérios restritivos e subjetivos do senso comum. Acreditamos que a nossa saúde é regida pela relação de causa e consequência que fotos (e filmes) nos mostram: “faça esse exercício e tenha vigor”, “coma dessa forma e você estará nos padrões”. Mas isso não é verdade. Ainda que possamos maximizar a saúde dos nossos corpos com escolhas saudáveis, não podemos controlá-los.

A saúde física pode nos trazer alegria e satisfação, mas a vida vai muito além disso. Bons relacionamentos, trabalho satisfatório e um lar seguro são apenas alguns exemplos de condições que devemos ter acesso independentemente do nosso físico. Como irmã de um paraplégico, posso afirmar que foram exatamente essas coisas que lhe proporcionaram qualidade de vida e, consequentemente, saúde mental e física — não o contrário.

Contudo, em uma sociedade que valoriza força física, independência e saúde, os deficientes, insalubres e os fisicamente fracos falham em atender às expectativas do status quo. Associamos um corpo dependente e comprometido a uma sina, o que torna o suicídio justificável. E quando vemos um caso de suicídio ou eutanásia decorrente de uma doença, já criamos justificativas e razões. Mas a doença e a incapacidade nunca tornam o suicídio uma decisão racional e boa.

A carta do “não julgue”, usada por Jojo Moyers para justificar sua obra, também é fatal para qualquer intervenção e compreensão dessa realidade. É como se a pessoa que a usasse estivesse falando: “nosso caminho se encerra aqui e, a partir de agora, cada um segue a sua direção”. Se nos acomodarmos ao fato de que cada um tem sua própria opinião e perspectiva, não vamos mais cultivar um lugar comum como sociedade. Basta imaginar que, em um grupo de expedição, cada pessoa possui uma bússola com um norte diferente e decide segui-lo por conta própria. O que será desse grupo? O que será do objetivo dessa expedição? Não existe um norte natural e comum a todos?

A omissão também é uma escolha: permanecer parado em um caminho traz grandes consequências a todos os envolvidos. Nesse sentido, subestimar, relativizar ou ignorar o sofrimento se torna mais importante do que proteger a vida de vulneráveis, daqueles que precisam desesperadamente de ajuda para reconhecer e viver de acordo com seu valor.

Nenhuma pessoa é uma ilha, mas é sempre mais fácil dizer adeus. Dizer adeus a discussões, a conversas que exigem nossa paciência. A encontros que testam os limites de nossa vulnerabilidade e entrega. A pessoas que sofrem e que se afundam em um sofrimento que vai além da nossa compreensão. É mais fácil dizer adeus a uma vida que não entendemos e que, de fato, não queremos entender.

Referências

  1. Belgian elects to die by euthanasia after botched sex change
  2. Declaração Universal dos Direitos Humanos
  3. Elderly couple to die together by assisted suicide even though they are not ill
  4. Eutanásia é aprovada em Portugal
  5. Me Before You
  6. Media Indifferent to Euthanasia Victimized Families
  7. The Three Worst Stories That “Me Before You” Tells About Disability

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Laura Poffo
Essentia

Cinéfila, maratonista de séries e apaixonada pela realização de grandes histórias. Também escreve sobre relações humanas em Essentia.