A coragem em ouvir

Laura Poffo
Essentia
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3 min readApr 3, 2020

Em tempos de quarentena, todos ficamos receosos com o efeito do isolamento em nossa vida social. Buscamos videochamadas, grupos de mensagens, mais e mais conteúdos. Marcas e influenciadores estão se comunicando por lives e publicações como nunca antes. A situação chegou ao ponto de ser cômica, com pessoas comuns também reproduzindo lives. Mas o que tudo isso está nos dizendo?

Quando vou a um restaurante, costumo observar as pessoas à minha volta. Gosto de imaginar como é a rotina delas e o que as levou a estar ali. E em milhares de situações, sempre há uma elemento em comum: um celular na mesa. Na mão para ser mais exata. Estando sozinhas, em casal ou em grupo, as pessoas se voltam constantemente para a tela, e não para frente. Estamos todos a postos para comunicar algo online, mas nunca para entender o que se passa diante de nós.

As redes nos tornaram reféns de estímulos e posicionamentos, sempre mostrando algum tipo de conforto ou aprovação. Criaram um mundo totalmente adaptado aos nossos gostos e que nos diz: “pode ficar aqui quanto tempo quiser, não tenha pressa”. Assim, somos anestesiados com uma falsa plateia das nossas vontades. E simplesmente esquecemos do outro.

Quando encaramos o desafio de ouvir alguém, nossa mente flutua em mil assuntos e apenas alcança pedaços do que está sendo dito. À medida que a pessoa fala, já tecemos uma resposta em nossa mente — ao invés de simplesmente escutar. Não entendemos mais o que é silenciar o nosso lado da conversa, pois já queremos calar o outro com as nossas opiniões. Como se elas valessem alguma coisa.

Acredito que, mesmo com a situação forçada de videochamadas, nossa realidade (ainda) não mudou. Apesar das pausas que precisamos para ouvir o outro na ligação, já estamos prontos para dar a nossa resposta. Além disso, estamos sendo vistos, reconhecidos. Endireitamos postura, cabelo e o que for para sair bem na conversa. Mas não lembramos que, para ter um encontro verdadeiro, precisamos do outro que está na linha.

Também esquecemos que ouvir requer dois princípios: mente e corpo. Se tem algo que não poderemos mais subestimar depois da escassez social, é a linguagem corporal. Não há nada mais desconfortável do que compartilhar algo pessoal com alguém que está digitando freneticamente no celular e diz, sem tirar os olhos da tela: “pode continuar, tô ouvindo”. Os dois sabem que isso não é verdade. Se fazemos duas coisas pela metade, não fazemos nenhuma bem.

Recentemente, descobri o trabalho do fotógrafo Platon. O que mais impressiona não é seu extenso (e famoso) portfólio de retratos, mas o seu processo de produção. Em um mundo puramente visual, ele exige apenas um sentido: ouvir. Quando ele entra no estúdio, ele conversa com a pessoa a ser fotografada e escuta a sua história, pois sabe nunca mais ouvirá algo igual. Ele reconhece a importância de cada pessoa que passa na sua frente e não perde os segundos valiosos que tem nesse encontro. Ao ouvir com os olhos, Platon é capaz de retratar histórias de quem sequer compartilha o mesmo idioma que ele. Por meio de gestos e olhares, ele se mostra inteiramente atento e aberto ao que a pessoa quer transmitir como sua verdade.

É interessante pensar que, em tantas cidades isoladas, o silêncio reina em lugares conhecidos pelo barulho. Animais voltaram a habitar locais que já não conheciam paz há gerações. Diante desse cenário, espero que possamos nos desligar um pouco de nós mesmos, para entender o que se passa à nossa volta e com o outro. Que possamos calar a ansiedade de nos mostrarmos presentes e ativos, para escutar o silêncio e o que é dito sem nenhuma palavra. Mais do que nunca, precisamos criar a coragem de ouvir, e não o conforto de dizer algo.

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Laura Poffo
Essentia

Cinéfila, maratonista de séries e apaixonada pela realização de grandes histórias. Também escreve sobre relações humanas em Essentia.