A falsa tradução do amor

Laura Poffo
Essentia
Published in
7 min readSep 11, 2020

Paixão, flores, ciúmes, declarações… qual é o verdadeiro nome do amor?

Um idioma muito falado, mas pouco compreendido

Podemos dar várias facetas para o amor. Mudamos seu estado de sólido para líquido, de líquido para volátil. Criamos justificativas para vivê-lo e não vivê-lo. Amamos amar, odiamos amar. Fazemos juras de amor e juras de “nunca mais”. Mas a verdade permanece a mesma: sempre precisaremos dele, ainda que não o compreendamos de fato.

Psicólogos da área comportamental concluíram que sentir-se amado é a principal necessidade do ser humano. No âmago da sua existência, a Humanidade busca a intimidade que existe em amar e ser amado. Como afirmado por Gary Chapman:

“Por amor, subimos montanhas, atravessamos mares, cruzamos desertos e enfrentamos todo tipo de adversidade. Sem amor, montanhas tornam-se insuperáveis, mares intransponíveis, desertos insuportáveis e dificuldades avolumam-se pela vida afora. Qualquer ato humano não motivado por amor é vazio em si mesmo e sem significado”.

Podemos concordar que a palavra “amor” permeia a sociedade tanto no passado como no presente. Contudo, também devemos admitir que é um dos conceitos mais confusos do nosso imaginário. Usamos a definição para contextos diversos, desde os mais profundos aos mais banais.

Por isso, para aprender o real vocabulário do amor, precisamos antes entender o que ele de fato é, sabendo diferenciá-lo de sua maior distorção: a paixão.

Paixão: uma língua destinada a ser morta

Logo depois de pedir sua amada Frances em casamento, o escritor Chesterton decidiu escrever a Mildred (esposa de seu amigo Waldo), contando-lhe a grande notícia de seu noivado:

“Querida Mildred:

Quando me levantei esta manhã, lavei cuidadosamente minhas botas com água e engraxei meu rosto. Então, vestindo o casaco com graciosa facilidade com os botões virados para as costas, eu desci para o café da manhã e alegremente coloquei café nas sardinhas e levei meu chapéu ao fogo para fritar. Estas atividades irão dar-lhe uma ideia de como eu estou. A minha família, vendo-me sair de casa através da chaminé e colocar a grelha da lareira debaixo do braço, pensaram que alguma coisa preocupava meu espírito. E era verdade.

Minha querida amiga, estou apaixonado!”

Esse divertido relato nos mostra sinais claros de uma paixão. Fazemos coisas que, em sã consciência, nunca faríamos. Damos declarações grandiosas e nos perdemos em devaneios sobre o objeto de nossa afeição. Esse aparente amor nos dá uma sensação única de invencibilidade e eternidade. Nunca somos tão corajosos como quando estamos apaixonados! Vemos casais perdendo esse sentimento e pensamos: “isso nunca vai acontecer conosco”.

A euforia dos apaixonados nos dá a ilusão de que estamos no ápice da intimidade, já conquistando nosso objetivo final de pertença e confiança na relação. Contudo, a verdade da paixão é mais amarga e egoísta: somos altruístas e corajosos apenas porque acreditamos que vamos receber tudo de volta. Cremos que a pessoa por quem nos apaixonamos também está comprometida a suprir nossas necessidades e demandas, e jamais será capaz de nos magoar.

Gradativamente, a falsa intimidade criada pela paixão se dilui, e os desejos individuais, as emoções e os hábitos assumem seus lugares. Manias e defeitos, que antes “não estavam” ali, tomam formas e contornos, e o desespero é iminente. “O amor acabou!”, pensamos com desânimo e derrota. Mas o que de fato acabou foi a ilusão de que o relacionamento estava destinado, exclusivamente, a nos atender.

De acordo com o psiquiatra M. Scott Peck e a psicóloga Dorothy Tennov, a experiência da paixão, sob hipótese alguma, pode ser chamada de amor. Para nos orientar nessa diferenciação, Dr. Peck elencou três razões pelas quais se apaixonar não é amor verdadeiro:

1) Apaixonar-se não é um ato da vontade nem uma escolha consciente

Não importa o quanto desejamos, não é possível se apaixonar voluntariamente. Basta lembrar quantas vezes essa experiência aconteceu de forma repentina em nossas vidas. E dessas vivências, quantas não surgiram no momento errado e pela pessoa errada?

2) A paixão não implica nenhuma participação da nossa parte

Qualquer coisa feita na paixão requer pouca disciplina e esforço. Gastamos horas no telefone porque queremos, viajamos juntos porque queremos, damos presentes porque queremos. São atos impulsivos e inusitados, sempre motivados pelo ímpeto de um desejo.

3) O apaixonado não está interessado no crescimento pessoal do outro

O real propósito da paixão é terminar com nossa solidão. Ela não se concentra no nosso desenvolvimento nem no da pessoa amada. Pelo contrário: a impressão é de que já se atingiu o que deveria se conquistar. Para nós, o outro é perfeito e não precisa mais crescer, mas apenas manter sua suposta “perfeição”.

É preciso, então, reconhecer a paixão pelo que ela é: um pico emocional temporário que nos leva até a oportunidade do verdadeiro amor. Ela está destinada a morrer na água rasa do pensamento individual e unilateral. Por esse motivo, dificilmente oferece um senso de realização pessoal.

Contudo, por ser constantemente confundida com o amor, ela é perseguida de relacionamento a relacionamento, pessoa seguida de pessoa. Matrimônios acabam por acharem que o seu fim foi sepultado com a paixão, e não há nada mais a ser feito.

Aqueles que saem pela porta da paixão deixam de conhecer a morada que buscamos habitar por toda a eternidade. O amor verdadeiro representa tudo que nossa razão e emoção buscam, não apenas nosso lado emotivo e fugaz. Ele envolve um ato da vontade real e exige disciplina, pois seremos chamados a dobrar vícios e egoísmos muito enraizados em nossa natureza.

Sim, meu amigo leitor, é aí que está a grande surpresa: o amor é uma escolha racional e consciente. Ele cresce com base na razão e não no instinto. Assim, nossa necessidade emocional básica não está em se apaixonar, mas em ser genuinamente amado pelo outro. Como afirma Chapman, “é preciso ser amado por alguém que escolheu me amar, que vê em mim algo digno de ser amado”.

Qual a melhor tradução para o amor?

O amor verdadeiro não exige a euforia da paixão. De fato, ele não começa enquanto a paixão não tiver se findado. Afinal, é nas realidades nuas e concretas da relação que ele se firma. Com esforço, paciência e honestidade, alcançamos, pouco a pouco, a conquista que a nossa essência sempre buscou.

Um amor intencional é construído a partir de escolhas verdadeiramente humanas. É necessário cultivar a amizade, a confiança, a troca. De nada adianta buscar um amante em uma pessoa e um amigo em outro. Você sempre estará dividido e sem se doar por inteiro.

Como primeiro passo no caminho do amor, é preciso se permitir ser vulnerável com quem se ama. No matrimônio, ambos entrarão nas vidas um do outro, de forma íntima e profunda. E amar é permitir tirar toda e qualquer máscara criada pela paixão.

“Viver é um rasgar-se e remendar-se.” – Guimarães Rosa

Abrir-se para amar alguém sempre será um risco. Sem garantias nem condições. O verdadeiro amor está em sair da sua zona de conforto pelo outro. É buscar, voluntariamente, a doação, sem esperar nada em troca. Se não, você estará apenas alimentando o seu egoísmo e afagando o seu ego.

Segundo a especialista Brené Brown, “a vulnerabilidade é o centro da vergonha, do medo e da nossa luta por merecimento, mas também é a origem da alegria, da criatividade, do pertencimento, do amor”. Não há maior conquista do que ser aceito e amado pelo que você é, em toda sua natureza, com defeitos a serem superados e qualidades a serem cultivadas. E essa descoberta só será possível pela sua abertura, vulnerabilidade e disposição ao amor.

Permita-se navegar por águas mais profundas. Por ser uma escolha ativa e racional, o amor permite infinitas tentativas em um único relacionamento. Então aproveite a boa notícia: sempre seremos capazes de amar! O maior prêmio do nosso esforço será o crescimento pessoal da pessoa amada. E isso nunca terá preço.

Veja além da beleza superficial da paixão e confie na riqueza secreta que lhe aguarda no amor. Você estará caminhando para atingir o mais alto potencial de sua vida.

Isto é o que descobri: (é preciso) nos deixarmos ser vistos, vistos profundamente, vulneravelmente, amar com todo nosso coração, mesmo que não haja garantia. E isso é muito difícil, eu posso dizer a vocês como mãe, isso é terrivelmente difícil. Praticar gratidão e alegria nos momentos de terror, quando pensamos: “Posso amar tanto assim? Posso acreditar nisso com tanta convicção? Posso ser tão ardente a esse respeito?” Só ser capaz de parar e, ao invés de dramatizar o que poderia acontecer, dizer: “Sou muito grata, porque sentir-me tão vulnerável significa que estou viva”. – Brené Brown

Referências

  1. As Cinco Linguagens do Amor — Gary Chapman
  2. Sentido da Vida — Vitor Frankl
  3. Grande Sertão Veredas — Guimarães Rosa
  4. O poder da vulnerabilidade — Brené Brown

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Laura Poffo
Essentia

Cinéfila, maratonista de séries e apaixonada pela realização de grandes histórias. Também escreve sobre relações humanas em Essentia.