Beleza e inteligência

Gabriela Vieira
Essentia
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5 min readOct 1, 2020

Assistir Cinderela em Paris nos últimos dias me fez viver uma viagem no tempo. Sempre gostei muito da atriz Audrey Hepburn e também de musicais. Durante o ensino médio e o início da faculdade eu só falava sobre essa atriz, seus filmes, sua beleza e também sobre a sua personalidade delicada e transbordante.

Dez anos depois, cá estou eu no auge dos meus 28 anos e com uma cabeça muito diferente da menina de 18. Observo coisas que antes não observava, mantenho alguns gostos, mas digamos que a pirâmide da hierarquia de valores tenha mudado. E uma das coisas que passei apreciar mais foi a vida interior e a autenticidade.

Em Cinderela em Paris, Jo Stockton, até então uma simples e desastrada vendedora de uma livraria, encanta, acidentalmente, a editora de moda Maggei Prescott que estava a procura de um novo visual para a revista Quality, de maneira que representasse beleza e sofisticação intelectual. Nesse cenário, Jo passa de uma garota tímida, mas cheia de conteúdo, para uma mulher elegante e classuda. Além disso, é nesse mesmo contexto que Jo conhece o fotógrafo Dick Avery e que todos vão a Paris trabalhar juntos.

Não vou explorar todo o enredo do filme neste texto para que você leitor fique curioso e assista. É um filme bem levinho, divertido e com cenas lindas, prometo. No entanto, algumas situações me chamam bastante atenção. Uma delas é que antigamente, há 10 anos, a minha personagem preferida do filme era a Jo, claro. Adorava a docilidade dela, o fato dela não querer ser modelo, toda a sua resistência com essa questão de ser fiel aos seus planos intelectuais. Eu via toda a postura da Jo com uma certa elevação moral e cheia de personalidade.

De fato, a Jo tem uma personalidade com interesses próprios e que, em um primeiro momento, chama mesmo a atenção, até por ela ser protagonista no filme. Mas hoje, o personagem que eu gosto mesmo é do fotógrafo, o Dick. Em uma das cenas, eles cantam e dançam a música Funny Face. É nessa parte, quando Jo revela suas inseguranças quanto aos seus atributos físicos, que Dick mostra a ela a sua beleza e que ela tem talento para ser modelo. Olhar para Jo e lembrá-la de quem ela é, é algo que ele faz ao longo de todo o filme.

Uma mulher, mesmo que com 8 anos de idade, sabe que precisa de um olhar que lhe diga que é bonita e que consegue, que é competente, de forma que a tranquilize. Essa é a maneira certa de incentivar a feminilidade da mulher e ajudá-la a crescer. E é isso que Dick faz o tempo todo com Jo no filme. Todas as vezes que Jo conversa com Dick no decorrer da história, ela se cura mais um pouco.

Jo, como todas nós, tem a necessidade de um olhar, um abismo, um vazio a ser preenchido e que parece sem fundo. Inconscientemente, ela buscava preencher essa necessidade do olhar do outro com os estudos sobre empatia e com a expectativa conhecer o professor francês autor da tese a qual ela se filiava.

A vulnerabilidade ao reconhecimento alheio pode ser muito evidente em um ambiente de editorial de moda, como no caso do filme. Ainda na Jo, mesmo que sem um interesse prévio em moda, isso fica tão latente quanto em todas as mulheres que conheço, cada uma ao seu próprio jeito. Ao primeiro momento, isso pode ser visto como uma forma de alimentar bens supérfluos, mas é apenas o desejo de algo a mais, de um bem maior.

Em uma das cenas do filme, Jo se encontra com o professor francês e perde a hora conversando com ele em um dos bares de Paris. Mas o que ela ainda não se deu conta é que nenhum homem jamais conseguirá olhar o bastante para ela, com atenção suficiente e a entenderá com todos os seus humores.

O problema não é o vazio, mas a forma como se preenche. Muitas vezes não vigiamos nosso coração e esquecemos de nos questionar: “a quem de fato queremos agradar?”. Sempre queremos agradar alguém. Todos os nossos hormônios, instintos, sugestões e criatividade podem nos confundir. Edith Stein chama atenção para “o desejo exagerado da mulher de tentar obter consideração para si mesma”. Precisamos estar atentas a nossa animalidade e fazer um trabalho contra nós mesmas.

É no coração que reside toda a nossa afetividade e é nele que vencemos a batalha contra a vida instintiva, com a devida atenção e como escolhemos lidar com nossos sentimentos. É no coração que encontro minhas emoções, inseguranças, mas também o desejo de um amor maduro.

Quando Jo descobre que não era exatamente o olhar daquele professor que ela queria e que ambos tem expectativas diferentes, isso a faz libertar uma beleza que não se pode explicar, mas somente ver. Jo se dá conta que é um mistério para si mesma e que não é o olhar do professor que a faz descobrir quem é e o que quer.

Quando acolhemos que muitas vezes nós mesmas não nos compreendemos, entendemos também como dá trabalho nos satisfazermos com o que há no nosso cotidiano e passamos a não lamentar por aquilo que falta. Por isso, é necessário separar, todos os dias, o olhar do coração e buscar amar mais os que nos são confiados, ainda que isso implique em ir contra as nossas próprias inclinações.

Alguns exemplos disso podem ser ficar quieta quando gostaria de falar, e falar quando preferiria ficar quieta ou guardar uma crítica porque o momento de dizê-la nunca é quando ela quer jorrar dos meus lábios, mas quando pode ser ouvida da melhor maneira.

Estar atenta a essas batidas do coração me fez perceber o quanto minha hierarquia de valores mudou . Uma consequência disso foi me interessar mais por amigas que põe em movimento a vida espiritual, elas sempre conseguem encontrar alguma coisa para dar e é revigorante estar ao lado delas. E isso faz outros discursos parecerem apenas uma lista de tristezas ou, de todo modo, de projeções de si mesmas. Vi o reflexo disso na cena em que a Jo chora vestida de noiva e isso fez com que o sentimento de impaciência chegasse rapidamente. O mesmo se repete quando encontro pessoas assim, que não ousam ir além dos próprios interesses.

Quando refleti sobre essa mudança na minha hierarquia de valores, uma coisa percebi em comum nessas amigas, que tem chamado mais minha atenção: elas dão a mesma resposta quando pensam em “a quem quero agradar?”

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Gabriela Vieira
Essentia
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Colérica sangue nos olhos, apaixonada por uma boa conversa e um cafézinho. Entusiasta quando o assunto é arte, política, literatura, música e filosofia.