Eu não sou apenas um corpo

Isabela Cardoso
Essentia
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8 min readMar 4, 2021

Uns dias atrás, me deparei com um episódio horrível no Instagram. Um certo influencer se gabava por ter, da janela do apartamento, vista privilegiada para um outdoor com o anúncio de uma marca de biquínis. A imagem mostrava algumas mulheres, dentre elas uma socialite famosa dos EUA. Não preciso me estender sobre o tipo de comentário que o influencer fazia sobre a foto e, digamos, a beleza das moças.

Aquela imagem certamente mexeu com os sentidos do homem, que, logo em seguida, compartilhou uma postagem com que se deparou: novamente a foto de uma mulher, dessa vez uma influencer, na praia. Ele teve, então, a brilhante ideia de abrir uma votação intitulada: “Quem eu devo homenagear hoje?”.

Novamente, já ficou bem claro como ele usaria aquelas imagens a seu favor. Com sons obscenos, ele mostra “a escolhida”, sem se preocupar com a exposição daquela sequência de stories para mais de 1 milhão de seguidores. Esse foi um dos posts mais depreciativos que eu vi nos últimos tempos.

Mas talvez isso não seja assim tão espantoso para a sociedade em que vivemos. Afinal, estamos inseridos em um mundo hiperssexualizado, onde a pornografia, a masturbação e a exposição desmedida do corpo se tornaram normalizados e são tidos como formas de se atingir o bem-estar.

Mas será que é assim mesmo? Com qual atitude devemos olhar para o nosso corpo – e também o corpo do outro? Como sociedade, de que maneira podemos, ativamente, construir um caminho de respeito às mulheres e sua dignidade? Afinal, somos apenas um corpo à disposição para ser usado e jogado fora?

QUE SOCIEDADE É ESSA?

Isabela: Além do senso de responsabilidade envolvido nessa questão (ou falta dele), é preciso ter noção de que fotos não são apenas imagens sem importância, mas representam pessoas reais e valiosas, que tem uma vida, uma dignidade e uma importância.

É notável a dificuldade, cada vez maior, que temos em enxergar o outro. Não como alguém que existe apenas para me agradar, mas que tem seus próprios desejos e valores e, por isso, não deve ser usada. Ainda que eu veja somente uma foto, e não o indivíduo em pessoa, ainda que o outro nem tome conhecimento do uso de sua imagem, é inegável que uma imagem representa, sim, o próprio indivíduo, e o uso da mesma acaba sendo o uso da pessoa.

Como sociedade, precisamos refletir se, ao incentivarmos o prazer como única forma de se obter felicidade e a exposição exagerada do corpo como a beleza mais nobre, estamos realmente caminhando rumo à tão almejada “libertação dos padrões de beleza”. Ou se, ao contrário, estamos criando homens desrespeitosos e que ignoram o valor de uma mulher, porque não conseguem mais enxergá-la como pessoa que, por si só e não pela beleza de seu corpo, tem um valor imensurável.

ONDE ESTÁ A NOSSA AUTOESTIMA?

Isabela: Desde que me entendo por gente, tenho ouvido falar dos malefícios gerados pelos padrões de beleza que reduzem as pessoas, principalmente mulheres, a uma numeração de roupa. Não foi à toa que surgiu, nos últimos anos, um forte movimento de valorização das curvas e “imperfeições” – se é que podemos chamar assim -, na tentativa de desconstruir o que é considerado bonito.

Apesar disso, exemplos como o caso do influencer mostram que, na realidade, estamos muito longe de alcançar a sociedade que queremos. Parece-me que estamos, na realidade, indo totalmente no caminho contrário ao da solução do problema.

O que precisamos desconstruir é qualquer tipo de culto ao corpo, seja o que nos faz enxergá-lo como mero instrumento para obtenção de prazer sexual, seja o que nos leva a cultuá-lo como uma composição de características físicas a serem reverenciadas a qualquer custo; mais ainda quando não seguem os padrões impostos pela sociedade.

Nesse caso, o cuidado, e por consequência a real beleza, parecem não ter importância. Mas a realidade não mente: a mulher é linda porque seu corpo reflete seu valor e beleza interior e exterior, próprios da mulher, não apenas porque possui um corpo, como se este fosse desprovido de uma alma ou valor transcendental.

Será mesmo que a maneira com que estamos desconstruindo os padrões, sobretudo os direcionados a mulheres, tem ajudado a sociedade a valorizar a beleza e o valor de cada uma?

Laura: É algo irônico. A sociedade ensina para a mulher que, quanto mais ela se expõe e cria curvas, mais livre ela é. Contudo, o efeito é o mesmo: a mulher sai da armadilha do padrão para a armadilha da exposição. “Só terei autoestima se eu me expor, mostrar como me amo, como gosto de cada parte do meu corpo”. Mas… se estou satisfeita com a minha imagem, por que preciso expô-la constantemente no feed dos outros? Por que me colocar tanto à mostra para pessoas que eu nunca vi na vida?

É preciso entender que a chave para a nossa autoestima está na aceitação de mim mesmo, e não dos outros. Se eu me aceito e me amo como sou, não preciso que o outro me valide a cada curtida e comentário. E vale lembrar: a sua imagem está exposta no mesmo feed em que coisas são vendidas, serviços são usados – onde apenas o visual reina. Você entende todas as consequências de se expor nas redes sociais? Como isso vai condicionar a sua autoestima?

ESTAMOS USANDO A BELEZA A NOSSO FAVOR?

Isabela: Acredito que nós, mulheres, devemos adotar um olhar para o nosso interior, para as nossas aspirações mais secretas, antes de nos arrumarmos para alguém. Eu quero ficar bonita para ser desejada por um homem que me vê apenas como um corpo que pode ser usado, ou quero mostrar minhas qualidades e ser amada de verdade como eu sou, independente dos meus atributos físicos?

Muitas meninas tem falado sobre autoaceitação, elogiando mulheres que não estão em sua melhor forma e incentivando que se achem bonitas assim mesmo. E é verdade, há beleza em todas nós! O simples fato de sermos mulheres já nos faz belas! Isso não significa que devemos aceitar nosso corpo como é a qualquer custo, ignorando as possíveis desarmonias e dando a elas o status de beleza. Isso apenas reduziria o corpo como simples conjunto de atributos físicos feito para ser admirado e cultuados apenas por isso.

Mas a autoestima não está em se contentar com o que se tem, mesmo que não seja o ideal. Ser bonita é, sabendo que você não é perfeita, se aceitar mesmo assim, é não negar os defeitos e afirmar que a beleza existe mesmo com os defeitos. É tratar os defeitos como defeitos, e não como beleza. Precisamos saber nomear as coisas. Nossos defeitos, tanto externos quanto externos, não fazem de nós menores ou piores. O que nos faz piores é não aceitar que temos esses defeitos e, pretensiosamente, agir como se fôssemos perfeitas.

Laura: Na História da Arte, vemos como o belo é sustentado pela harmonia. São formas, cores e elementos que criam imagens não necessariamente perfeitas, mas agradáveis ao olhar e que nos elevam ao nosso melhor. A Arte, quando bela, é capaz de fazer o homem enxergar além de si mesmo, ver sempre o melhor em si e todo o potencial que é capaz de alcançar. E o mesmo deve se aplicar a nós mesmos!

Quando você está em equilíbrio (e harmonia) consigo mesmo, aceitando suas qualidades e seus defeitos, você passa a ver além de necessidades egoístas e superficiais. Você entende o que precisa ser melhorado e o que precisa ser valorizado. A sua vida deixa de ser validada pela visão do outro, mas pela sua própria consciência e maturidade de ser o seu melhor.

Toda pintura clássica tem seus pontos de luz, que direcionam o olhar para aquilo que é agradável e harmonioso, enriquecendo a obra como um todo. Será que temos esse mesmo cuidado com a nossa beleza? Buscamos nos tornar a melhor versão de nós mesmos – ou simplesmente nos acomodamos?

O PERIGO DE EXPOR O CORPO

Matheus: Minha participação neste texto será apenas um toque para as mulheres: Há 3 semanas, tive que criar uma conta no TikTok para a empresa em que trabalho. Não sei se você que está lendo já usou essa rede social, mas a maior parte do conteúdo é muito sexualizado, bem mais do que nas outras redes.

O que mais me impressionou foi a quantidade de mulheres (e aqui falo mulheres, porque não apareceu no feed nenhum conteúdo desse tipo com homens para mim) dispostas a expor o corpo na internet. Pessoas comuns se expondo completamente para qualquer pessoa ver. Uma professora chegou a postar que um aluno viu os conteúdos sensuais dela no aplicativo e foi falar com ela depois da aula. E ela contou como se fosse algo para se orgulhar.

Mulheres, vocês têm que entender algo muito importante: quem vê esse tipo de conteúdo, seja um vídeo no TikTok ou um ensaio sensual no Instagram, não se importa nem um pouco com você. Essa pessoa não vai te respeitar, te admirar ou sequer te desejar como uma mulher. Você se torna exclusivamente um objeto de prazer visual. Não importa o seu rosto, o seu corpo – você é apenas um estímulo sexual. Não é aí que você vai encontrar sua autoestima, muito menos sua felicidade ou pertença. Seu amor próprio não está na exposição, está em você mesma. Não se sujeite a algo que te diminui.

Laura: No fundo, todos sabemos a verdade: a regra do “doa a quem doer” sempre volta para aquele que a diz. Muitos expõem físicos, poses e caras numa tentativa de “provocar a sociedade”, de mostrar o quão irreverentes, seguros e ousados podem ser com seus corpos.

Contudo, bastam 24 horas para tudo isso ser esquecido. Mais uma vez, a falsa ilusão da validação pública se esgota, e todos seguem sedentos por mais e mais atenção. Quem sai perdendo? O corpo, que passa por mil disfarces, procedimentos e figurinos para ser aceito por todos – mas nunca pela própria pessoa.

Precisamos entender o valor que o nosso corpo tem. Se o tratamos como mera mercadoria, um objeto que pode ser manipulado por qualquer um, estaremos colocando boa parte de nossa integridade e auto-aceitação em risco. Deixamos de confiar em nossas decisões e nosso discernimento, para colocar tudo a critério (e uso) daqueles que sequer são responsáveis pelo que acontece em nossas vidas.

Isabela: Todos nós bem sabemos que o ambiente masculino, e por consequência o próprio imaginário de muitos, é permeado de imagens sexualizadas e objetificantes da mulher. No entanto, nada se faz com relação ao que eu chamo da cultura da pornografia e da masturbação.

Enquanto essas continuarem a ser incentivadas, e seus malefícios pormenorizados, nunca conseguiremos criar uma sociedade de homens honrados e respeitosos, mas vamos continuar a lidar com o machismo, a violência, o desrespeito.

É preciso combater o mal pela raiz! Lutemos contra a normalização da pornografia! Busquemos a vivência saudável da sexualidade, que requer a união entre dois corpos para que seja verdadeira, completa e forneça uma real felicidade, baseada na completude entre dois corpos que verdadeiramente se amam e querem se doar ao outro.

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Isabela Cardoso
Essentia

Biotecnologista e mestranda em Biologia, amo fazer perguntas, divulgar a ciência no IG vida.de.cientista e escrever sobre relações humanas no Essentia.