Lentes para enxergar
Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, minha resposta transitava entre veterinária, astronauta e não sei. Já adulta, no momento em que optei por biotecnologia, me lembrei que as histórias dos grandes inventores e descobridores sempre me fascinaram e eram o que eu mais gostava de aprender na escola.
Às vezes “não sei” ainda parece ser uma resposta melhor para aquela pergunta, sobretudo quando me vejo diante de um futuro não muito promissor como cientista no Brasil. No entanto, qualquer resquício de dúvida vai embora quando me vejo em uma bancada de laboratório, olhando para coisas que nunca imaginei que poderia ver de tão pequenas; ou na varanda de casa antes de dormir, tentando identificar as constelações na escuridão acima da minha cabeça.
Para mim é uma sensação única me sentir “entendedora” do mundo, estar em constante questionamento e aprender com grandes cientistas que não se conformam com explicações fáceis ou meias respostas. Mas o mais valioso é perceber que, a depender da posição em que me coloco, o mundo ao meu redor pode parecer ao mesmo tempo tão grande ou tão pequeno.
Ao olhar através das lentes de um microscópio, por exemplo, a vida ganha uma nova dimensão. O mundo invisível, que ali passa a ser enxergado, é silencioso, mas agitado, é descoberto, mas ainda muito desconhecido – afinal, seu funcionamento perfeito e organizado independe do nosso controle.
Sob o microscópio, não se revela apenas a vida que antes estava oculta, mas também grandes aprendizados sobre nós mesmos e os que nos cercam. Ali descobrimos que a existência vai muito além do que podemos ver ou tocar, que nossos sentidos e inteligência são limitados e que não somos senhores de nada.
Da mesma maneira, não podemos tocar o céu ou as estrelas, ou conhecer por completo o universo em que vivemos. Se comparado com a história do universo, pouquíssimo tempo se passou desde que a vida apareceu na Terra e, menos ainda, desde que a espécie humana desenvolveu uma forma de se comunicar, de se organizar como civilização e de construir a história como a conhecemos.
Se antes me via gigante diante de um microscópio, agora, ao olhar para a natureza à minha volta, percebo que nossa vida é apenas um instante de tempo, ainda que vivamos como se fôssemos eternos.
Em 1990, a Nasa tirou uma foto da Terra vista a 6 bilhões de quilômetros, em que ela aparece como um “Pálido Ponto Azul” no meio de um grande raio marrom na escuridão do universo. Em um discurso histórico, o astrônomo Carl Sagan compartilhou sua reflexão sobre essa imagem:
“Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada “superestrela”, cada “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali — em um grão de pó suspenso num raio de sol.
[…] As nossas posturas, a nossa suposta auto-importância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca.”
A busca por conhecer o mundo ao nosso redor nos fornece um senso de eterno e nos conecta com o transcendente. Nos faz perceber que somos parte de um mundo gigantesco, o qual temos o privilégio de compreender, mas nunca por completo.
O conhecimento tem um sentido também transcendental: ele não nos leva a nos agarrarmos em um mundo material, mas nos conecta com um mundo imaterial que fala muito sobre a vida concreta.
Einstein explicitou bem a ideia de que o que enxergamos é apenas uma fração do mundo – ainda que, pela ciência, consigamos ampliar a nossa visão. Ele dizia:
“ A mais bela coisa que podemos vivenciar é o mistério. Ele é fonte de qualquer arte verdadeira e qualquer ciência. Aquele que desconhece esta emoção, aquele que não pára mais para pensar e não se fascina, está como morto: seus olhos estão fechados.”
Marcelo Gleiser, o premiado pesquisador brasileiro e professor na Dartmouth College, nos EUA, esclarece:
“De certa forma, a ciência é um flerte com o mistério. E isso tem um componente espiritual muito profundo, pois é como nos relacionamos com algo muito maior do que nós somos. É óbvio que a ciência tem uma metodologia, […] mas se você pensa no contexto cultural e emocional do processo científico, existe uma componente que eu diria ser essencialmente religiosa.”
Diante dos avanços científicos, e da grande satisfação que é possuir conhecimentos novos, tendemos a polarizar a nossa visão e permanecer imersos nos fascínios da Ciência, já que ela felizmente explica muito do que vemos.
É verdade que somos inteligentes, sábios e que, em algum momento da vida, podemos chegar a ser poderosos. Muito do que temos e somos hoje se deve ao desenvolvimento do saber científico. Este nos permite conhecer o que antes era inexplicável e, assim, podemos criar novas e melhores soluções.
Porém, durante a pandemia de COVID-19, já me peguei pensando inúmeras vezes em como, apesar de todos os avanços tecnológicos (que tornam mais fácil a superação das dificuldades), continuamos reféns de um vírus que há pouco não tínhamos nem mesmo noção que existia. Algo tão pequeno e invisível modificou completamente a forma de viver em sociedade.
Nessa pandemia, aprendemos que não se vive apenas do conhecimento, mas também de experiências, de sentimentos, de espiritualidade. Se fôssemos seres apenas racionais, até poderíamos criar uma sociedade puramente cientificista.
Mas, ao contrário, somos seres diferenciados, justamente por não sermos apenas matéria, por termos o poder de enxergar a realidade a partir de diferentes perspectivas. Não somos simplesmente substância tangível, mas carregamos um aspecto espiritual, incorpóreo, que não vemos nem mesmo com o melhor dos equipamentos e, ainda assim, nos constitui e nos define como pessoas, sociedade e mundo.
Poder entrar em contato com o mundo embaixo de um microscópio ou sobre um telescópio, apesar de fascinante, não deveria nos fixar em uma visão reduzida ou limitada a apenas um ponto de vista, como se a explicação científica fosse a única válida.
Ainda que a ciência nos leve a ter uma visão objetiva do mundo em que vivemos, essa visão não é completa. A ciência é apaixonante na medida em que nos clareia a visão sobre o mundo, mas outras formas de conhecimento também o fazem. Nossa inteligência, por mais que consiga nos fornecer respostas alentadoras, nunca poderá explicar tudo.
Se nos fixamos apenas nela em busca de um maior conhecimento, podemos, ao contrário, nos perder em uma visão simplista ou reduzida sobre o que é a vida e sobre nós mesmos, já que, inegavelmente possuímos um caráter espiritual e intangível.
Assim, a visão científica é necessária e extremamente importante, sobretudo para nos auxiliar na percepção de que somos parte de um universo complexo e, de certa maneira, inatingível pelos sentidos. Ela não mente, ela nos completa, mas nunca será a única resposta para tudo. É apenas uma das muitas lentes necessárias para se chegar, um pouco mais perto, do conhecimento sempre mais apurado que buscamos atingir.
“Não é possível olhar o ser humano apenas através de uma lente científica, mas de forma plural. Como um ser que filosofa, faz arte e que tem algum tipo de fé.” (Marcelo Gleiser)
Referências: