Não fomos feitos para pouco
Nos primeiros dias de 2020, em meio às arrumações e planejamentos entusiasmados típicos de início de ano, encontrei um caderninho que estava guardado há dois anos, desde quando o havia ganhado de uma grande amiga.
É um caderno especial, vindo de outro país, a capa tem uma textura maravilhosa, a primeira página foi personalizada com uma foto e o marca página com uma mensagem no verso. É óbvio que, pessoa nada apegada que sou, preservei o caderno para ocasiões especiais, só iria usá-lo quando surgisse a necessidade de escrever algo realmente importante.
Naquele dia 4 de janeiro eu estava especialmente empolgada. Sabe como é, “ano novo, vida nova”. Sentia-me animada e repleta daquele espírito aventureiro e corajoso que surge em ocasiões de recomeço: eu finalmente iria organizar minha vida e teria um ano incrível, NOTA 20! Mas, ao mesmo tempo, eu me encontrava de certa maneira angustiada pelo que não havia feito no ano anterior (atire a primeira pedra quem nunca, não é mesmo?).
Diante do sentimento ao mesmo tempo animador e apavorante de ter tanto a mudar, o momento me pareceu oportuno para inaugurar o caderno, sentia-me incutida a encher aquelas folhas com algumas inspirações do momento. Lembrei de um poema, que logo escrevi no caderninho especial, com uma letra especial, usando uma caneta especial:
“A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem — um dia — uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
(Mário Quintana)
Enquanto escrevia, percebi por quanto tempo tinha deixado esquecido aquilo que me era tão caro. De que adiantou guardá-lo na gaveta se não busquei ocasiões especiais para usá-lo? Escolhi planejar demais e esperar “a hora perfeita”, mas é que o perfeito nunca chega, e o que eu queria genuinamente valorizar, acabou por ser esquecido e ignorado.
Mais singular que aquele caderno, um mero objeto, era a vida que escorreu e escorre de minhas mãos. Assim como aconteceu com o caderno, ao fazermos na nossa vida planejamentos em excesso ou abstratos demais, ficamos paralisados e frustrados por não termos cumprido o que nos propomos a fazer.
Parece óbvio, mas muitas vezes não paramos para pensar que o sentimento de angústia que pode nos consumir, sobretudo ao olharmos para o que passou, deve-se, em grande parte, por não termos cumprido o que, com certo grau de razão, os outros e a sociedade esperam de nós: que utilizemos os nossos talentos para realizar alguma coisa.
Se não tomo para mim a responsabilidade de, atenta às aspirações que carrego no mais profundo da minha alma, fazer o que sou chamada através das minhas competências, deixo de cumprir minha missão no mundo, é como se faltasse uma gota no oceano, e sem essa gota, ele ficasse incompleto. Eu e você fomos feitos para contribuir, com nossas capacidades, para a criação do mundo que queremos. Quando não buscamos viver a nossa essência plenamente para atingir todo nosso potencial, nossa vida se torna como um presente especial, mas esquecido na gaveta.
As aspirações que temos em nosso interior tem um propósito e devem ser valorizadas. Olhemos para o nosso íntimo, nossas vontades mais profundas, nossos nobres desejos e maiores sonhos e descubramos que não podemos ser felizes se não vamos ao encontro de tudo isso que está incutido em nós por meio de nossas circunstâncias, história de vida e caráter.
Oportunidades de amar, de contemplar a beleza no encontro com os outros, de aprender não só nos momentos difíceis, mas também nos bons - tudo isso deve ser vivido e aproveitado no muito, porém ligeiro tempo que temos à nossa disposição. Porque não tomar a decisão de estarmos atentos aos detalhes, valorizar cada momento, pessoa e experiência sem nos perder em planejamentos excessivos? Não guardemos a nossa vida como eu guardei o caderno, vejamos e utilizemos a oportunidade de fazer do caderno, UM CADERNO, cheio de anotações, útil como deve ser, e da nossa vida, UMA VIDA, frutífera, útil, verdadeiramente bem vivida.
“Nunca é por ter-se dado ou sacrificado que um homem se esvazia, mas por ter-se poupado” (A preguiça, Francisco Faus).
Que lindo deve ser chegar ao final de nossas vidas e sentir que usamos todo nosso talento a serviço de um bem maior, que o tempo que tivemos inteiramente à nossa disposição, como páginas em branco de um caderno, não foi desperdiçado, mas preenchido com a doação ao outro, por um propósito maior.
Que tratemos nossas vidas como as páginas de um caderno que ganhamos de presente. Que a gente não deixe de usar uma caneta especial e uma letra especial ao preenchê-lo com aquilo que importa e que nos faz filhos, irmãos, amigos, estudantes, profissionais excelentes e que sabem se doar. Que sejamos homens e mulheres íntegros, entregues, profundos, com os olhos voltados para o alto, movidos pela certeza de que não fomos feitos para pouco.