Nudez e as obras de Tolkien: o corpo humano como objeto da indústria audiovisual

Matheus Marques
Essentia
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5 min readOct 16, 2020
Cena do filme “O Senhor dos Aneis”

Nas primeiras décadas do séc. XX, um senhor sul-africano mudou a história da literatura. J. R. R. Tolkien criou o maior e mais complexo mundo da fantasia literária, com diversas criaturas, cenários, temas e línguas. Imagino que, caso você não tenha lido as obras do autor, você já deve ter assistido, pelo menos, algum dos filmes baseados nas obras dele.

De maneira bem resumida, todo esse mundo fantástico criado por Tolkien é uma alegoria sobre companheirismo, lealdade, fidelidade, sacrifício, amor, determinação, resiliência, entrega e, principalmente, sobre a superação das dificuldades, não importa quais elas sejam, e a libertação de nossos vícios. A luta do bem contra o mal.

Esse não será um texto para falar especificamente sobre a obra de Tolkien, suas grandes e complexas narrativas e como, para mim, é uma referência literária essencial a qualquer ser humano. Hoje, quero falar sobre algo muito triste que vem acontecendo com a indústria audiovisual e sobre como isso afeta a obra e o legado do autor.

A Amazon está produzindo uma série baseada nas obras de Tolkien, que deve se passar entre a 2ª e a 3ª Era, cronologiamente anteriores às histórias de O Senhor dos Aneis e O Hobbit. De acordo com a empresa americana, será a maior e mais cara produção de um seriado já feita, com cenas de batalhas campais de grandes proporções, diversos cenários e uma detalhada produção cenográfica e de ambientação.

Temos, até aí, algo muito bom — uma série bem produzida sobre uma história excepcional. Mas, há algumas semanas, a Amazon divulgou uma nota que deixou os fãs preocupados. A série abriu um chamado para atores que estejam “confortáveis com nudez” e contratou um “coordenador de cenas íntimas”. As cenas seriam escritas por Brian Cogman, um dos roteiristas de Game of Thrones. Brian está na produção da série da Amazon desde o ano passado.

Nudez e o corpo humano

Antes de fazer mais considerações sobre a série, é importante ressaltar o papel da representação do corpo humano e da nudez na arte.

Olhando para as grandes obras de arte na história da humanidade, é possível encontrar o corpo humano como o centro das produções. Das pinturas nas cavernas, passando pela arte greco-romana, Michelangelo, de Picasso a Tarsila do Amaral. Nosso corpo é a maior obra de arte já feita e a comprovação está em nossa produção artística e visual.

O que seria da humanidade sem Davi ou a A Criação de Adão de Michelangelo? Sem o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci? Sem todas as obras que nos mostram a beleza e a perfeição de nossos corpos?

A nudez, em si, não é algo ruim — é algo muito bom. É a expressão perfeita da arte.

E aqui entra o mas: precisa estar em um contexto que não desvalorize e tire a dignidade do corpo humano. A pornografia é um exemplo claro disso: uma produção audiovisual que transforma o corpo em objeto e tira toda a sua beleza. O corpo deixa de ser arte e se torna produto.

Nudez no cinema e na TV

Esse é o problema com a série da Amazon.

Em primeiro lugar, a inserção de nudez e cenas de sexo na série tem uma única função: marketing. Fazer com que as pessoas tenham mais interesse em assistir a série. Um caso famoso é a série True Detective, da HBO. Nic Pizzolatto, autor e produtor do drama, era contra a inserção de cenas de sexo na série, mas a HBO só liberou a produção na condição da série ter esse tipo de cena.

Segundo Pizzolatto, a justificativa seria que “as pessoas só vão se interessar se tiver sexo”. O que eles disseram, na verdade, é que eu e você somos incapazes de apreciar uma produção audiovisual pela narrativa ou pelos personagens. É um questionamento à capacidade intelectual dos telespectadores.

Outro ponto questionável da decisão da Amazon é a própria obra de Tolkien. Toda a concepção da obra do autor surgiu de um único propósito: escrever uma história para os filhos. Uma história que os ensinasse as principais virtudes, a como ser um homem de verdade.

E existe nudez nos escritos do Tolkien, mas sempre com propósito e significado:

  • Os hobbits em Crickhollow: nudez situacional — eles estão tomando banho.
  • Merry, Sam, e Pippin nas colinas de Tyrn Gorthad: nudez como liberdade.
  • Gandalf no Zirak-Zigil: nudez no “nascimento’.
  • Frodo em Cirith Ungol: nudez como vulnerabilidade e humilhação.
  • Nienor: nudez como inocência.
  • Saeros: nudez como falta de civilidade e como humilhação.

Com base na obra de Tolkien e com a informação de que, muito provavelmente, teremos cenas de sexo em uma série derivada do trabalho do autor, o próprio público deu uma resposta extremamente negativa. Este é um dos milhares de comentários na internet sobre a decisão da Amazon:

Eu, pessoalmente, estou em conflito com a possibilidade de potenciais cenas de sexo em uma série de O Senhor dos Aneis. Eu não me oponho a sexo em Fantasia, mas Senhor dos Aneis? Eu sinto que é o contrário do espírito de O Senhor dos Aneis. E sinto que o trabalho de Tolkien lembra tanto o cavalheirismo Arturiano, cenas de sexo não dão certo com o trabalho dele. Eu também sinto que nós estamos nos aproximando de uma era estranha na mídia onde todos estão tão convencidos de que nós somos incapazes de prestar atenção a não ser que tenhamos a expectativa de ver alguém pelado.

A nudez e o sexo são partes essenciais da beleza, da pureza e das virtudes e da integralidade do ser humano. Por isso, o uso desses elementos para simples uso comercial é uma distorção das características que definem o corpo humano como a principal obra de arte da história. Transformam o corpo em um mero instrumento de prazer, ainda que apenas visual.

Ilustração de Senhor dos Aneis por Alan Lee

O encantamento produz um Mundo Secundário no qual tanto planejador como espectador podem entrar, para a satisfação de seus sentidos enquanto estão ali dentro; mas, em sua pureza, ele é artístico em desejo e propósito. — J. R. R. Tolkien

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Matheus Marques
Essentia

Publicitário, jornalista e designer. Escrevendo sobre investimentos e mercado financeiro para o Finis. Discutindo sobre o que nos faz humanos no Essentia.