O entorpecimento do intelecto

Gabriela Vieira
Essentia
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9 min readJul 2, 2020

“A criminalização nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, á que os homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena do gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. A tudo isso se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade, por motivos de que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida dos nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontroa em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. Anota-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.”

Na obra 1984, o autor George Orwell descreve uma técnica de linguagem chamada novilíngua. O método é capaz de encurtar pensamentos e mudar o significado real das coisas, de modo que todos os conceitos passam a ser expressos por uma palavra, de sentido rigidamente definido e cada significado subsidiário é eliminado até ser esquecido. É assim que os regimes totalitários controlam o pensamento das pessoas: por meio do controle da linguagem.

Quando o tema é aborto, nota-se uma defesa intransigente para que haja a sua legalização. Depois do caso Roe versus Wade nos Estados Unidos, responsável não só pela legalização do aborto mas por todo um ativismo histórico pró-aborto, indiretamente, Estados nacionais e soberanos cedem cada vez mais suas autonomias a pressões da comunidade internacional e influentes movimentos sociais, que atuam em várias camadas da sociedade.

Ceder a esse tipo de “pressão” é cada vez mais comum em maior e menor escala. Estamos falando aqui de um efeito que atinge desde nações, decisões judiciais e até pequenos grupos dentro de uma comunidade, inclusive redes sociais. Mas por qual razão isso tem acontecido? Owen Fiss, professor emérito de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Universidade de Yale, ao abordar a democracia contemporânea, destaca que algumas argumentações se apresentam como se fossem pontos incontroversos, a partir dos quais toda discussão deveria necessariamente partir.

Isso geralmente acontece quando se pretende tocar na validade do argumento. O interlocutor, que se sente ameaçado, tende a desqualificar o adversário com a finalidade de silenciá-lo, apontando nominações como “fundamentalista religioso”, “acientífico”, “anti-científico”, “ignorante”, “machista” e até “antidemocrático”. Nesse tipo de situação, o que acontece é o chamado ‘efeito silenciador do discurso’, de maneira que, travestido de democrático e propagador da liberdade de expressão, se retira arbitrariamente o tema do debate e, conjuntamente, se desqualifica o outro debatedor, por meio das chamadas “fighting words”.

O que temos nesse tipo de situação é uma intimidação e assédio, além de se eliminar qualquer diversidade da esfera pública. Em um nível nacional, vislumbramos o Estado como amigo da liberdade de expressão, de forma que a promoção de discursos de ódio, financiamento de campanhas, pornografia, financiamento público das artes e o acesso aos meios de comunicação em massa são colocados como formas de discurso, desde que passem pela regulamentação estatal.

A título de exemplo, no Brasil, temos atualmente o PL 2630/2020. Conhecido como o PL da Censura, traz entre os seus artigos: a coleta de dados e rastreabilidade, segundo o qual até grupos da sua família poderão ser vigiados (art. 10); sob o risco de politização e ameaça à liberdade de expressão em que um conteúdo pode ser removido da rede social simplesmente por ter uma opinião diferente do conselho verificador (art. 26 e 27); atraso nas inovações que impede os brasileiros de acessarem serviços inovadores de startups no exterior (art. 33,36 e 37); dados pessoais em risco pois permite que eles sejam compartilhados de forma desnecessária (art. 8); e, por fim, uma proposta confusa de moderação de redes (art. 12).

A filósofa americana Ayn Rand afirma que o caso promoveu as bases do atual ativismo retórico. Ou seja, uma camada mais politizada e engajada da sociedade, de reconhecida atuação na opinião pública, faz uma espécie de propaganda retórica. Uma observação importante é que, até hoje, tenta-se reverter o caso Roe versus Wade e a mulher, “vítima” do caso, Norma L. Mc Corvey se tornou uma importante ativista contra o aborto.

O fragmento destacado em itálico que inicia o presente texto é parte da decisão de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no HC 124.306, impetrado por 5 presos por crime de aborto, incorrendo nos artigos 126 (aborto) e 288 (formação de quadrilha) do Código Penal brasileiro. Alguns dos réus tinham clínicas clandestinas de aborto, sem qualquer controle sanitário e à margem do ordenamento fiscal, submetendo várias mulheres a altos riscos de saúde. A decisão acata um viés ideológico específico sobre o tema, trazendo características comuns quando de trata desse assunto.

O voto do ministro traz aspectos partilhados em toda abordagem da propaganda pró-aborto. Com uma tática de fuga do problema debatido, termos mais fortes como “eliminação”, “abortamento”, “morte” e “destruição" são omitidos e trocados por expressões tais como “interrupção da gestação”.

Nesse jogo semântico, as palavras assumem significados contrários ao que expressam: escravidão passa a significar liberdade, o assassinato de um filho se identifica com direitos reprodutivos, um movimento anticatólico é visto como manifestação do direito de católicos, o mal significa bem e a mentira passa a ser vista como verdade.

Na rede de articulação semântica e proselitismos, o que se afirma como debate não passa de uma propaganda para seduzir mulheres e jovens social e psicologicamente fragilizadas, além de induzi-las a erros, articulando uma complexa rede de interesses ideológicos e econômicos.

O próprio termo “debate” cria uma falsa impressão de tolerância. Falsa, pois quando o assunto é aborto, todo esse jogo palavras e significativos, carregado de falta de lealdade, não traz um real confronto de opiniões contraditórias, com critérios objetivos de racionalidade e rigor analítico que se fazem necessários. Ao contrário, o pretensioso “debate” está pronto para repelir qualquer menção ao status pessoal e moral da vida do nascituro.

Por qual razão se quer, a todo pretexto, excluir o nascituro da comunidade moral? Não se pode despersonalizar alguém por força de acordos consensuais. Ser parte da comunidade moral humana não depende de títulos que se adquirem por decretos políticos.

Toda essa objetificação do humano traz uma dessensibilização gradual das pessoas. Como observado na experiência de Milgram, o distanciamento social produz a desumanidade. Tornar o outro distante (física, social, biologicamente etc.) possibilita a aceitação de medidas extremas. Quando nos aproximamos do outro, há uma promoção da empatia (palavra tão manipulada e reduzida atualmente). Surge um campo fecundo para esse sentimento de importância para com aqueles que sofrem, que estão em situação de perigo, de privação e vítimas potenciais, ensejando uma partilha da sua aflição. Essa capacidade de se colocar no lugar do outro leva as pessoas a seguirem certos princípios morais.

O voto relator do HC 124.306 traz algumas dificuldades implícitas. Isso é notável quando ele menciona “vida potencial do feto” e faz distinções entre vida intrauterina e vida extrauterina. É certo que há uma diferenciação morfológica entre um homem ou uma mulher, um embrião ou um feto e ainda entre estes e uma criança nascida. Mas o argumento pressupõe que o ser intrauterino não é um ser humano, o que é indesculpável, por considerações éticas e também por razões científicas embasadas em pesquisas embriológicas. O termo “aglomerado de células” é totalmente descabido.

Ainda do ponto de vista semântico, não faz o menor sentido falar em “vida em potencial”, já que o feto é um ser vivo, membro da espécie humana. Seu “potencial” diz respeito apenas para uma vida adulta e não para ser pessoa. O que muitas vezes não se nota é que a admissão dessa noção do feto como “aglomerado de células” fará com que um ser humano adulto ou uma criança nascida também não passe de um aglomerado de células, só que maior. Por que motivo a proibição o aborto antes do terceiro trimestre de gestação viola direitos e no quinto, sexto, sétimo ou nono mês não? O problema que não é mencionado é sempre o mesmo: o status "pessoa" do embrião porque ele não desenvolveu o sistema nervoso.

No trecho do voto, nos deparamos com imprecisões de terminologia filosófica. Enquadrado em um contexto retórico, o voto do ministro traz a questão do aborto acima de qualquer suspeita e se esconde por trás de um véu humanitário, com o “direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres”. Afinal, quem vai se opor aos direitos das mulheres de terem uma vida saudável? Termos como estes têm um forte apelo emocional e são cheios de confusões conceituais. Pessoas em situação de vulnerabilidade são facilmente manipuladas assim.

Esse tipo de imprecisão semântica faz parecer bom o cidadão e a sua opinião sobre a lei para o benefício de todos com uma linguagem maquiada, mas cheia de argumentos utilitaristas, relativistas, circunstanciais, pragmáticos e determinados por uma vontade humana (mal formada, inclusive). Os chamados “direitos” são decisões que tentam se fixar em leis positivas. Dessa forma, se dilui uma individualidade no todo. A força dessa vontade é tão absoluta e autorreferente que ela pode decretar quem é e que não é pessoa.

É certo que a dignidade não é um valor que se pode dar ou tirar de alguém por força de um proselitismo ideológico ou de uma autodeterminação de um consenso. Um sistema maduro que traz direitos e garantias está muito além da força da persuasão, mas sim, deve trazer à tona a realidade. Essa realidade é abordada por Kant como a pessoa cujo valor é a sua dignidade.

Em uma comunidade de direitos fundamentais, as ações humanas devem ser limitadas por certos tipos de obrigações e sanções, exigindo responsabilidade de todos os membros da comunidade. Logo, há limites objetivos para além das impressões subjetivas. Nesse sentido, falar em direito ao aborto implica em ser contrário a uma comunidade moral, pois tem-se um rompimento total do senso de comunidade familiar, fundado, primeiramente, na relação mãe e filho. Ou seja, essas obrigações e restrições também abrange as gestantes.

Não cabe a uma sentença tratar, de forma tão rasa, o assunto como um problema de saúde pública. Aborto não é doença, nem epidemia, nem fome, nem contágio. Se trata sim de um nascimento de uma pessoa. As consequências sociais ou sociológicas, demográficas ou econômicas, morais ou antropológicas são graves demais para que juiz, togado ou eleito, tenha a palavra final. Abordar o tema com reducionismos, conscientes ou não, é ocultar e afastar do debate todos os argumentos ou fatos que possam contraditar sua posição.

Tudo isso cria um efeito psicológico, demonstrando uma certa urgência na liberação do aborto, como um ato de benevolência com as mulheres e beneficente para a saúde da sociedade. O fato é que a questão de tal ordem é, antes de tudo, uma questão filosófica, antropológica, ética e civilizacional, pois lida com os limites do que denominamos como humano. Não cabe aqui proceder de uma forma tão seletiva e muito similar ao que acontece no caso de racismo e mentalidades excludentes, nas quais uns são humanos e outros menos.

Referências:

1. 1984, Geoge Orwell.

2. Contra o aborto, Franciso Razzo.

3. Precisamos falar sobre aborto, mitos e verdade, Eduardo Luiz Santos Cabette.

4. A ironia da liberdade de expressão, Owen M. Fiss. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto.

5. Habeas Corpus 124.306/2016

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Gabriela Vieira
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Colérica sangue nos olhos, apaixonada por uma boa conversa e um cafézinho. Entusiasta quando o assunto é arte, política, literatura, música e filosofia.