O fenômeno da família piquenique

Gabriela Vieira
Essentia
Published in
11 min readOct 30, 2020

A pandemia explicitou muitas vulnerabilidades humanas. Uma delas é a relação entre familiares, em especial pais e filhos. O confinamento deixou muito claro que os pais ficaram sem saber o que fazer com seus filhos em casa.

Aquilo que, até então, se tinha como autoridade passou a ser questionado dentre os familiares. Ficou evidente que, há muito, alguns pais já não conviviam com suas crianças. Muitos educavam alguém que sequer conheciam. É como se jovens e crianças ficassem à deriva na educação e ninguém se responsabilizasse por isso.

É certo que a família forma o homem para a plenitude da sua dignidade pessoal conforme todas as suas dimensões, inclusive social. Esta família é insubstituível para o ensino e a transmissão de valores culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem estar dos seus próprios membros, também integrantes da sociedade. É a primeira escola das virtudes sociais, de que todas as comunidades necessitam.

Gosto de pensar no ser humano como uma pirâmide: a sua parte física é exercitável (ainda que cada tenha suas aptidões, há uma prática); outro aspecto é a inteligência, a busca da verdade, passada do educador para a criança, podendo ter o auxílio da escola; e, por último, a vontade. É muito importante que os pais tenham em mente que eles são os principais responsáveis por cuidar desses pilares e que a escola é um colaborador desse processo — e não o contrário.

O professor deve ser visto como esse colaborador que vai ajudar, mas nunca pode ser definido como alguém que vai retirar essa responsabilidade que cabe aos pais. Não adianta delegar tudo para a escola, como se ela fosse responsável por treinar a parte física, educar a vontade e a inteligência. À escola não cabe essa formação integral.

A família tem um papel de todo original e insubstituível na educação dos filhos. Se trata de um direito-dever dos pais educar seus filhos. Este dever está essencialmente ligado aos pais assim como eles estão ligados à transmissão da vida humana. No entanto, apesar de serem os primeiros, não são os únicos educadores de seus filhos. Aos pais, cabe o exercício da responsabilidade em colaboração estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais.

É necessária uma união entre as escolas e a família, um verdadeiro diálogo com alinhamento de ideias. Quando isso não acontece, o que temos são crianças desnorteadas. Não se pode ter o professor e a escola como alguém que deve arcar com toda a responsabilidade que cabe à família. Quando a escola sente essa responsabilidade, ela vê que pode, de certa forma, defraudar os pais.

Quando se trata da vida escolar, muitos pais se preocupam muito com o método e pouco com o conteúdo. Deixam de lado o que tem sido ensinado, se há um estímulo de conhecimento (desejo inato de todo ser humano) ou se isso está sendo anulado sob a premissa de ter um filho aprovado no vestibular. É importante ter um olhar atento e sensível para a possível redução do ser humano dentro da educação.

Os pais de hoje sabem o que querem da educação? Eles sabem avaliar aspectos importantes da escola? A escola sente a responsabilidade de formar bem, inclusive os pais? Eles sabem o que é uma pessoa? Ainda se pode contar com a tradição?

Percebemos, na nossa sociedade, que os pais precisam ser formados. Muitos não sabem o que querem, e os professores não sabem o que os pais precisam. Temos, então, dois pilares doentes na formação de uma criança: os pais e os professores. A família não sabe o que esperar de uma escola e nem qual papel ocupa na formação de seus filhos.

Como consequência, o confinamento colocou muitos pais diante de filhos que não conheciam, mas também diante de pais que não conheciam a si mesmos. Houve um certo desespero coletivo que foi além das circunstâncias sociais. Quem não ouviu um “as escolas precisam voltar logo” ou qualquer outra manifestação de insegurança? Ficou evidente a angústia dos pais e a crise de autoridade experimentada pela sociedade pós-moderna.

Dificuldade da autoridade

Quando se fala em autoridade, muitos pensam em uma espécie de força, persuasão ou até em uma questão de temperamento. Mas, na verdade, falar em autoridade é falar de um exercício que comporta uma série de elementos e valores. É um componente que passa, antes de tudo, pelo caminho da formação.

Antigamente, ordens eram dadas com mais facilidade. E com as virtudes habituais, vinha a tradição. Ensinar era algo quase que natural nas pessoas. Quantos ofícios e sabedorias não foram passados de geração a geração?

Contudo, esse costume foi se desvalorizando com o passar de anos, décadas e séculos. A perda de tradições foi moldada a partir de idiossincrasias que colocam as pessoas em dúvida quanto a critérios objetivos. Como consequência, temos uma ética que vem sendo desvirtuada e desvalorizada. Mais do que pensar a educação, começou-se a sentir a educação.

O filósofo Alasdair MacIntyre chama isso de emotivismo, uma doença social que se tornou dominante. Hoje a educação é a partir do que se sente, apoiada em uma emoção que não é racional. Portanto, é algo subjetivo e não objetivo.

Cada vez mais, o emotivismo se torna um fenômeno global. Ao tentar educar com objetividade, racionalidade e princípios, um formador é constantemente taxado de fundamentalista. Educadores, então, se veem em uma posição insegura, com receio de assumir esse papel e serem percebidos dessa forma.

As justificativas são inúmeras e variadas, mas não há outro caminho: a autoridade surge a partir da racionalidade. Sem o exercício da razão, tanto o educador quanto o educando serão sempre pessoas inseguras. Hoje há um movimento de muita emoção, muita angústia e, na hora de se colocar assertividade, os pais ficam medrosos ou com um grande sentimento de culpa.

Há um medo em dizer “não” para o filho, por não querer sentir a dor do “não”. O grande dilema vem da falta profunda de energia, firmeza e fortaleza. Ser mãe é muito diferente de ser amiga da filha. Com uma relação de igual para igual, se anulam em o crescimento pessoal e afetivo.

Ocupar o papel de autoridade como pai e mãe exige conhecer aquele filho, se aprofundar na etapa de vida em que ele se encontra. Uma criança de 4 anos é muito diferente de uma criança de 5 anos, que é muito diferente de uma criança de 6 anos... E a desatenção a cada um desses momentos coloca os pais diante de situações que ofendem seus filhos sem nem mesmo perceber. É necessário se preparar para esse comportamento, sendo prático e realista.

Muitas vezes, os pais se desgastam em seus papéis na hora de mandar, por agirem de forma inadequada para a idade do filho. As crianças querem ser amadas como um todo. Por isso, é importante conhecê-las como são, para amá-las como são. Manter a autoridade demanda um ajuste cronológico com quem se fala, sob pena de ser injusto. Sem essa condição, a autoridade carece de serenidade, harmonia e prudência. É como um maestro inseguro perante a sua orquestra, que se perde em seus movimentos pela falta de destreza e atenção.

Educação deficiente

Muitos pais são imaturos e precisam ser educados para entender o mundo, e então corresponder aos seus filhos.

Muitos pais só consomem a educação passivamente, o que João Malheiro, doutor em educação, chama de “família piquenique”. Nesse contexto, o ambiente familiar permite apenas distração e lazer. Assim, cada um tem sua própria rotina de gostos e vontades, sempre com uma convivência pacificada, onde um não pode se incomodar muito com o outro.

Quando vemos pais que se preocupam realmente com a educação dos filhos (que se responsabilizam ativamente por isso ao invés de delegar completamente para o Estado e para o professor), o que salta aos olhos é o quanto esses filhos são amados. Destaca-se ali uma entrega apaixonada.

Quando o pai realmente ama o filho, ele sabe do que o filho precisa. Ele está atento e busca estar atento. Quando o professor ama realmente os seus alunos, ele sabe qual é o conteúdo importante. O que se verifica é que há uma relação importante entre amar o filho/aluno e o conteúdo da educação. Por que, então, insistimos em fabricar moldes de conteúdo?

O amor demanda que saiamos de nós mesmos. Um exercício disso é educar. A educação está aí para que transcendamos, para que possamos sair do nosso mundo egocêntrico. No entanto, notamos materiais pedagógicos chulos, presos a uma realidade muito pequena. Ensinar uma criança é retirá-la da realidade dela, para observar que o mundo vai muito além daquilo que ela vive. Mas a família precisa ir além. E o educador precisa ser para a criança alguém que ela almeja ser.

A mentira educacional

Hoje há uma mentira educacional: o filho não pode sofrer nada. Diante dessa farsa, como ficará a afetividade da criança? Numa realidade em que aprendemos que a felicidade está ligada a proporcionar todos os prazeres da vida, o que temos são crianças tímidas, egoístas e inseguras.

A luta contra coisas ruins exige um hábito, a busca contínua das virtudes. É necessário educar os filhos pela ordem material e isso é difícil para criança, por ela querer fazer aquilo que lhe apetece. É preciso reduzir esse comportamento e, ao mesmo tempo, mostrar que existem coisas muito mais valiosas.

A boa educação da afetividade reside na ética da substituição: mudar daquilo que não vale pelo que vale — do algodão doce que não gera nada pelo filé mignon. É assim que um filho escolhe passar duas horas lendo um bom livro: ele já percebeu, afetivamente, que esse é um caminho mais realizador do que um videogame. Se ganha gosto pelo sacrifício.

Isso nos leva à base de toda a educação: a afetividade. A partir do momento em que a criança nasce, essa é a parte mais importante. A educar a afetividade faz com que busquemos todo o resto do conhecimento. Afinal, se não há uma rede de confiança na qual a criança possa se apoiar (onde certas coisas são imutáveis), como eles serão adultos seguros?

Ao se ver o pai de uma forma transcendente, vemos ali algo externo a nós, que nos mantém na realidade, nos mantém vivos e que não mudará. Esse amor por nós é imutável e estará lá, independentemente do que o filho faça. Os pais precisam ser essa rede de apoio, para que os filhos tenham certeza de que isso não muda em suas vidas. “Meu pai me ama independente dos meus defeitos, independente das minhas qualidades, independente do que eu faça e ele está ali para me ajudar a crescer”. Isso é a autoridade.

Educação é olhar para o filho, reconhecer quem ele é — nunca com um olhar de crítica ou de que é culpado pelas suas imperfeições. O filho é um ser humano como qualquer outro, do qual se precisa extrair as coisas boas e orientar suas más inclinações. Cada um tem uma abordagem diferente: ainda assim, há uma diversidade rica e poderosa de ensinamento entre as pessoas.

Há pessoas que são mais inclinadas à vida intelectual, outras que são inclinadas à praticidade e organização, outras ainda são mais inclinadas às relações pessoais. E é na convivência familiar que as crianças reconhecem os defeitos e as qualidades que possuem, com as ferramentas certas para lidarem com isso.

Segundo Rafael Llano, a educação da afetividade começa no amor de apetência (aquilo que me apetece), vai para o amor de complacência (aquilo que compartilhamos juntos), se desenvolve para o amor de benevolência (amar o outro desinteressadamente) e, por fim, encontra o amor transcendente. E uma boa educação afetiva gera frutos em todos esses âmbitos.

A falta de uma afetividade preparada, por exemplo, faz com que a criança não tenha base para assistir uma aula chata, mas que é importante. O déficit de atenção ganha espaço diante desse desalinhamento, na medida em que a criança não está ordenada para uma aula que ela não gosta. Falta apetência para uma mesa de estudos com dever de casa — especialmente quando confrontada por um sofá com videogame.

A educação da afetividade é a privação de um bem efêmero por um bem maior. É encontrar uma alegria em algo trabalhoso sem resultado imediato, para valer a pena futura e eternamente.

A vida intelectual exige que se conviva com dúvidas. No início, não se tem essa compreensão total e está tudo bem. Afinal, a criança sabe que uma hora a compreensão do todo irá chegar. Este momento em que ela vai entender chega à medida que vai lendo e explorando um determinado assunto. A educação que se tem hoje nas escolas (e em muitos materiais didáticos) é a de que a criança deve entender tudo. Como consequência, seu potencial adormece e ela se nivela por baixo, assimilando dados, não conhecimentos.

A liberdade educativa

Falamos, no início do texto, que a responsabilidade (no que tange a educação dos filhos) é poder-dever da família. Ainda assim, é possível contar com outros educadores, que colaboram na formação do ser humano. Cada um pode e deve intervir na medida da sua competência.

Para isso, é imprescindível que os pais tenham uma liberdade educativa. Os pais têm o direito inerente de escolher instrumentos formativos correspondentes às suas próprias convicções, buscando meios para ajudá-los da melhor maneira na sua tarefa de educadores.

A família precisa respirar melhor o ambiente educacional dos seus filhos, adequando cada filho à sua necessidade, com a possiblidade de ser o verdadeiro protagonista da educação. Mas será que os pais querem essa liberdade? Querem ser protagonistas? Já compreenderam essa diversidade dos filhos?

O que deve fundamentar a decisão das famílias são respostas sinceras por parte dos pais a essas perguntas:

Tenho sido protagonista na educação do meu filho? Por que tanto tempo do meu filho é exposto às telas? Eu quero me livrar dele? Eu quero ter tempo para mim e por isso me utilizo desses recursos? Ou não? Eu quero que ele aprenda algo com o que ele está vendo? Ou eu quero que ele gaste o tempo dele?

É necessário parar, pensar e se questionar das motivações. Muitos pais expõem os filhos a joguinhos e justificam com: “ah, ele não está gastando o tempo dele, o jogo é educativo”. Mas é necessário deixar claro que esse tipo de aprendizado não é eficaz. Um aprendizado com uma intervenção humana sempre será melhor. Aprendizados precoces nada mais são do que adestramentos e fugas da realidade, que em nada influenciam positivamente em um aprendizado duradouro.

É certo que o Estado não pode reivindicar para si o monopólio escolar e educacional. Sendo assim, cabe à família oferecer uma educação integral, onde se formam indivíduos orientados para o diálogo, o encontro, a sociabilidade, a legalidade, a solidariedade e a paz.

Educar está diretamente relacionado a amar, se doar, estar atento e se responsabilizar de maneira integral. É dentro da família que o homem cresce em responsabilidade e liberdade, elementos imprescindíveis para se assumir qualquer tarefa na sociedade. Portanto, é essencial — e vital — que os pais se lembrem de seu papel central na formação da Humanidade.

👏 Se esse artigo foi útil, deixe sua nota de 0 a 50 palmas

💬 Se tiver sugestões ou algo a acrescentar, comente aqui!

--

--

Gabriela Vieira
Essentia
Writer for

Colérica sangue nos olhos, apaixonada por uma boa conversa e um cafézinho. Entusiasta quando o assunto é arte, política, literatura, música e filosofia.