Os dois lados da moeda: traição

Laura Poffo
Essentia
Published in
9 min readMay 20, 2020

Infelizmente, acredito que todos nós conhecemos algum caso próximo de traição em um relacionamento. Esse cenário sempre me deixou muito perplexa, apesar de nunca ter passado pela situação (não que eu saiba). Até fiquei receosa em escrever este texto, por não ter a propriedade para falar de algo que nunca vivi em primeira mão. Mas parei e pensei no óbvio: eu não preciso sofrer uma traição para entender o mal que ela pode causar. Mesmo que não a mim diretamente.

Há alguns dias, a Isabela Cardoso conversou comigo sobre o assunto e o que leva um relacionamento a chegar nesse ponto. Ela, como uma boa cientista, resolveu fazer sua pesquisa de campo e levantar a opinião de outras pessoas. Então decidi seguir o exemplo dela e fazer minha própria busca por respostas e perspectivas diferentes.

Comecei por uma conhecida, perguntando o que o grupo de amigos dela pensava sobre traição. Por ser seis anos mais nova, ela vive em uma geração completamente diferente da minha. Contei sobre situações que já havia presenciado e questionei como pessoas aparentemente tão boas e inofensivas poderiam destruir anos de relacionamento por apenas uma noite com outro.

Ela compartilhou que um amigo dela já havia traído sua namorada, e a justificativa dele não poderia ser mais intrigante:

“Ele me falou que sabia que ela ficaria magoada se soubesse da traição. Por isso, o mais importante não era trair, mas evitar que ela descobrisse.”

Há três elementos nessa fala que precisam de atenção exclusiva: a consciência, o ato e a mentira. Para esses pontos de análise, convidei o Matheus Marques para compartilhar o outro lado da moeda e termos tanto a visão masculina como a feminina desse cenário.

Então vamos à problemática:

A consciência

A visão dela: Sempre me alertaram de que a traição já começa nos pensamentos. Você cria cenários, alimenta expectativas altas e fantasias mirabolantes, ao ponto de se desafiar a vivê-las. Para a mulher, a situação culmina no maior vício feminino: comparação. Ela passa a comparar o seu relacionamento ou seu namorado aos outros, vendo o que há de bom e ruim. E, como bem sabemos, a grama do vizinho será sempre mais verde.

A partir disso, a mulher tece um discurso de que não recebe o tratamento que merece. Infelizmente, em muitos casos, isso é real, com homens que apenas usam suas parceiras para seu bel prazer. Mas esse abandono dentro da própria relação justifica pagar na mesma moeda? Isso só não traz mais sofrimento para os dois e, em especial, para a própria mulher?

Também é preciso avaliar o quão forte é o diálogo do casal. Se as dores estão sendo compartilhadas e discutidas, se há espaço para mudança ou se os dois se contentam com algo superficial e cômodo, onde ninguém precisa se sacrificar. Caso a única resposta afirmativa seja para a última pergunta, fica claro que o escapismo da relação está, mais uma vez, fundado no que um lado quer para se satisfazer.

Em nossas raízes egoístas, sempre queremos o melhor para nós mesmas. Cabe a nós decidirmos: vou cortá-las ou regá-las com mais ilusões e vaidades? A questão é que a mulher sempre tem consciência das mentiras, sendo para ela mesma ou para os outros. E essas desculpas se acumulam até estourarem na traição em si.

A visão dele: Existe uma cultura de que homens traem e mulheres são traídas. Não apenas isso, mas a cultura de que homem que não trai “não é homem de verdade” (eu já escutei essa frase algumas vezes durante a vida). Eu e você, homens e mulheres, crescemos com essas ideias completamente equivocadas na cabeça. Não diretamente, mas o conceito está presente em nossos subconscientes. Caso você não concorde, vou dar alguns exemplos.

Se um homem diz que vai jogar futebol toda quarta à noite com os amigos, para onde ele está indo? Se ele chega em casa tarde depois do trabalho, sem avisar por onde esteve, e diz que estava com os colegas em um bar, onde ele realmente estava? O que você pensou?

A arte produzida por uma sociedade é um excelente resumo de sua cultura. Escute algumas músicas dos anos 90, principalmente canções sertanejas. Sobre o que elas falam? Que o homem está apaixonado, que está traindo ou que foi abandonado. Geralmente abandonado depois de ter sido pego traindo.

Do outro lado da cidade tem

Alguém que me deixa dividido

Uma diz que sou um bom amante

A outra diz que sou um bom marido

Mais recentemente, as mulheres ganharam bastante espaço no cenário musical do sertanejo. E a que muitas das canções se referem? Ser traída.

Ê, infiel

Eu quero ver você morar num motel

Estou te expulsando do meu coração

Assuma as consequências dessa traição

ou

Não sei se dou na cara dela ou bato em você

Mas eu não vim atrapalhar sua noite de prazer

E pra ajudar pagar a dama que lhe satisfaz

Toma aqui uns 50 reais

Não apenas no sertanejo ou no Brasil. Músicas de grandes artistas internacionais também seguem essa ideia e abordam o tema de traição. Beyoncé, Rihanna, Shakira, Maroon 5, Justin Timberlake, Sam Smith… Já cantou a música “It wasn’t me” do Shaggy? Eu já, diversas vezes.

Também podemos pegar os milhares de vídeos e piadas na internet sobre o homem escondendo o celular da mulher, por exemplo. Você já deve ter escutado a “história” da mulher como uma “fechadura” e do homem como uma “chave-mestra”, uma infeliz e equivocada comparação entre os sexos.

Mas a maior evidência dessa cultura está nas próprias ações dos homens. Como homem, cresci ouvindo histórias em grupos de escola, faculdade, trabalho e futebol sobre traições. Conversando com outros homens, escutei diversas vezes sobre como vários deles já haviam traído. E ainda contavam vantagem enquanto narravam as “puladas de muro”. Já ouvi de uma pessoa próxima que ele havia traído todas as namoradas que teve. Segundo ele: “eu não consigo não trair”.

Nesse mesmo dia, estávamos eu, essa pessoa e cerca de 3 outros homens conversando em uma roda. Para a minha surpresa, eu fui o único ali que afirmou nunca ter traído uma namorada. Todos admitiram que sabiam que era errado, mas faziam mesmo assim e se importavam mais que a companheira não descobrisse do que com a traição em si.

Sem justificar qualquer tipo de traição, mas imbuídos nessa cultura de infidelidade, o trair se torna “comum”. Principalmente para o homem, que já não possui objeção de consciência com o ato. Assim, qualquer atração física por outra pessoa se torna uma possível traição. Contraditoriamente, a fidelidade é uma das virtudes mais cobradas para o sexo masculino, de maneira especial nas relações de amizade de homens com outros homens.

O ato

A visão dela: Acredito que, para a mulher, o trunfo da traição esteja no proibido. No desafio de viver algo sigiloso, único e exclusivo. Na condição de ser desejada e conquistada não apenas por um, mas dois ou mais homens diferentes.

Há algum tempo, aprendemos que devemos romper normas e quebrar paradigmas — mas não sabemos quais são os limites e as consequências dessas rupturas. Devemos ser empoderadas e ter a mesma “liberdade” sexual que o homem, doa a quem doer. Mesmo que seja quem você mais ama.

O mais peculiar desse cenário é que perdemos o valor da pessoa em si, enxergando apenas o que ela nos traz como benefícios. Ela passa de um ser amado para um objeto desejado. Não há mais interesse real em seus sentimentos e valores, mas apenas nas emoções e fogos avassaladores que ela nos traz.

E a própria mulher passa a se objetificar. Ela reduz o seu eu interior a um sistema frio de instintos e prazeres, quando poderia desenvolver, pelo outro, a superação de seus próprios defeitos e a conquista de qualidades únicas.

A visão dele: Na mente do homem, se o ato sexual por si não possui um significado especial e trair é “comum”, o ato da traição, por si, é “apenas” sexo com mais uma pessoa. Ainda existe a ideia do “roubado é mais gostoso” – ou seja, fazer o que é errado, sabendo que é errado e correndo risco de ser pego, é ainda “melhor”.

No fundo, todos sabem como aquilo é errado – antes, durante e depois do ato. A fidelidade é um instinto natural à maior parte dos animais, inclusive ao ser humano. É o motivo pelo qual a traição sempre tem um gosto amargo por trás, ainda que seja prazerosa no momento.

A mentira

A visão dela: Com a consciência do erro, vem o remorso. Mas a mulher resiste, de todas as formas, a admitir que errou. Somam-se mais e mais mentiras para ela e todos que estão à sua volta. Lembro, até hoje, de quando meu grupo de “amigas” da 5ª série decidiu encobrir o namoro de uma delas com a minha paixão platônica da época.

Elas sabiam o quanto eu gostava dele — e justamente por isso fizeram de tudo para evitar que eu soubesse da relação (lembra da história que contei ali em cima?). Descobri da forma mais dolorosa, com elas me distraindo de modo falso e superficial no momento em que vi a outra passeando com o menino pela escola.

O mais interessante nessa história é ver que, quando o amor é genuíno, ele é livre. Não precisa ser acobertado e escondido sob as peneiras da mentira. E apesar de ter sido uma “traição” de amizade e não de namoro, aos 11 anos eu já sabia o quão errado era tudo aquilo. Afinal, a mentira destrói a base de qualquer relação: confiar cegamente no outro. Hoje esse conceito até nos parece infantil e irreal.

A visão dele: Ainda pior do que para as mulheres, o orgulho do homem resiste em admitir que errou. Sabendo que fez algo grave, o homem, na maior parte das vezes, busca esconder o que aconteceu de modo incansável, criando uma barreira. E homens são bons nisso. Não apenas em relação a traições, mas em diversas situações. Por exemplo, são comuns histórias de maridos e pais que retornam de guerras e passam restante da vida sem falar sobre o que aconteceu lá. Barreiras que nunca se abrem.

E o homem, no geral, não sabe lidar com essas barreiras, ou com a queda delas. Quando confrontado por uma traição, qual a resposta mais comum? Se tornar agressivo. Porque não sabemos lidar com a derrubada daquilo que construímos para nunca cair. O que jamais justifica uma agressão física ou verbal.

A principal desculpa para se manter na mentira é sempre a mesma: não magoar os sentimentos da pessoa traída. A verdade é que os sentimentos dos outros não importam; é apenas um ato individualista e egoísta para justificar os próprios erros.

Conclusão

Em meio a toda essa análise, percebemos que um elemento é esquecido e deixado de lado: o outro. Aquele que, de fato, sofre as consequências amargas da traição. Quem experimenta a dor, a perda e o abandono em primeiro lugar. O “eu” se repete excessivamente, tomando o lugar desse outro indivíduo.

Especialmente quando o relacionamento está instável ou em um mau momento, corremos o risco de acionar o “salve-se quem puder”, fugir e deixar o outro à deriva. Escapamos para as fantasias e ilusões que alguém externo nos oferece. Pois é muito mais fácil sanar as nossas próprias vontades, como uma criança mimada que chora por atenção, do que abrir mão de gostos e vícios para chegar a um meio termo no relacionamento. Afinal, não entendemos mais o que é se sacrificar pelo outro. E essa é a maior perda nesse jogo chamado traição.

*Nota do Matheus: Uma reflexão sobre a traição. Não podemos amar plenamente duas coisas. Em todas as situações, temos preferência por uma das opções, sem exceção. Se você está comprometido com alguém e decide pela traição, você está dizendo a si mesmo que prefere estar com outra pessoa do que com seu/sua companheiro(a). Se isso é verdade, por que ainda está com seu/sua parceiro(a)? Se é mentira, por que você está traindo?

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Laura Poffo
Essentia

Cinéfila, maratonista de séries e apaixonada pela realização de grandes histórias. Também escreve sobre relações humanas em Essentia.