Uma amizade autêntica

Gabriela Vieira
Essentia
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13 min readApr 8, 2021

Quem não tem aquele amigo que parece um lar?! Aquele que sempre deixa uma mensagem no seu celular dizendo “Onde você está?” ou “O que você está fazendo?”, ou ainda, “Está tudo bem?”. Experimentar a amizade é experimentar um amor gratuito; é aquele amor que permite valorizar a pessoa por quem ela realmente é.

A amizade verdadeira não busca instrumentalizar o outro, mas antes de tudo busca o outro, se põe a serviço dele. É de graça. Esse desinteresse é uma das características mais marcantes de uma amizade. Aquele que ama o amigo, não busca benefícios nele.

Em tempos de supervalorização de comparações, onde encontramos ambientes que fomentam competições, parece difícil acreditar que exista esse dom sincero de si. Mas a verdade é que todo mundo gostaria de ter uma amizade assim: com autêntica profundidade.

Quando temos a sorte de experimentar essa amizade sincera o que experimentamos é a felicidade. Os amigos tornam os nossos problemas mais leves, ainda que não seja obrigação de nenhum deles. Quem não prefere fazer academia ou um esporte com um amigo?! Quanto consolo e alegria encontramos em uma boa amizade. Como as tristezas se aliviam pelo simples estar ali de um amigo fiel.

Afeto Mútuo

Para que uma relação aconteça, são necessárias duas disposições: alguém que dá e alguém que recebe. A partir dessa troca, todos nós temos uma experiência para contar sobre como um amigo nos mudou e como, sem aquela pessoa, talvez não fossemos os mesmos.

Assim como um rio que nasce lá no alto da montanha, de uma nascente fraquinha e com o percurso vai ganhando mais água e mais força até desembocar no mar, a amizade também segue esse trajeto. Nasce de gestos tímidos e pouco a pouco vai ganhando força. Conselhos, risadas, conversas, confidências, o tempo e o perdão são gestos que vão compondo e fortalecendo uma verdadeira amizade.

Gabriela: Sempre imagino a minha vida repleta de diversas conexões humanas, em diversos tempos, lugares, através de laços que surgiram em razão da escola, do inglês, da igreja, faculdade, pessoas em comum… e por aí vai. Várias foram as circunstâncias que me fizeram conhecer meus amigos e desenvolver um relacionamento com eles.

Algumas dessas pessoas se tornaram mais próximas e me ensinaram muitas coisas novas. Muitos amigos me ajudaram a compreender maneiras de ver a vida diferente daquela que eu tinha e isso me enriqueceu como pessoa, me fez ser um pouco mais quem eu sou hoje.

Meus amigos me ensinaram a me abrir, a compreender, a cuidar dos outros, a sair da minha comodidade, do meu isolamento e partilhar a minha vida. Ter essa perspectiva me ajuda a amá-los mais e mais. E experimentar essa reciprocidade me fez ter segurança nesse amor.

Laura: Não tem nada melhor do que descobrir que você pode ser você mesmo com outra pessoa! Aos poucos, vamos construindo um caminho até a intimidade do outro, e é incrível perceber o quanto vocês podem ter em comum. São anseios, desejos e medos que, apesar de não serem exatamente os mesmos, são repletos de compreensão e identificação.

Ver o outro crescer diante de você é algo fascinante. E poder participar desse processo é melhor ainda! Nós bem sabemos o potencial que o outro tem de amadurecer e atingir seus sonhos, ainda que ele não enxergue. Por isso, é preciso otimismo, coragem e alegria para motivar o seu amigo em sua jornada, respeitando o seu tempo e comemorando cada conquista com ele.

Poder ter tudo isso em retorno, sem que você menos espere, é um efeito leve e natural. Quando você ama alguém pelo que ele é, você não espera algo em troca. Apenas espera a felicidade do outro em ser o seu melhor. Assim, você conquista um ciclo virtuoso e firme de amizade para toda a vida!

Bela: Não consigo imaginar como seria minha vida sem a presença de amigos que são exemplo, que me motivam, que me fazem crescer. Sem eles, eu nada saberia sobre doação mútua, sobre fidelidade, companheirismo e confiança. O valor de uma amizade é imensurável porque é somente pelo amor para com o diferente e a aceitação do outro que aprendemos a ser a melhor versão de nós mesmos.

Matheus: É cada vez mais comum ver pessoas pregando que “você não precisa de ninguém”. E vamos seguindo nessa linha, nos afastando, nos isolando, ficando mais tristes e sozinhos. Você certamente já percebeu isso, se não na sua própria vida pessoal, nas pessoas próximas a vocês.

Além de serem necessidades básicas do ser humano, a estima e a pertença são naturalmente boas. A aspiração por fazer parte de um grupo, ser amado e respeitado nos impulsionam a sermos melhores pessoas, melhores amigos.

Um dos pontos positivos da pandemia (tentando buscar algo bom de uma situação ruim), é que as pessoas perceberam a importância das amizades, das ligações humanas. Ninguém se sentiu feliz longe dos seus, sozinho, sem contato físico com os amigos. O “você é autossuficiente” passou para “é bom poder contar com seus amigos, sua família”.

Gratuidade da amizade

Em razão dessa característica essencial nesse tipo de relação, não é raro encontrar pessoas que caem na armadilha de acreditar que podem viver sem os amigos. Por inúmeras razões, há aqueles que olham para o consolo de uma amizade com desconfiança.

Mas a verdade é que só temos um coração. Com esse mesmo coração com que amamos nossa família, também amamos os nossos amigos. Alimentar desconfianças é correr o risco de despedaçar o nosso coração. De dividi-lo e de nos privar de viver uma autêntica amizade com gratuidade, deixando de ofertar o dom sincero de ser quem somos.

Essas experiências de amizade, de sabermos que somos amados pelos nossos amigos, não podem nos encher de orgulho, mas sim de gratidão. Quando a amizade é despida da gratuidade, ela simplesmente não surge de maneira autêntica.

Gabriela: Essa questão da amizade gratuita é algo que deve ser visto com muita atenção. Não escolhemos nossos amigos por questões práticas ou de utilidade, e muito menos usamos os amigos como um trampolim social. Simplesmente devemos buscar amar nossos amigos por eles serem quem são.

Isso também nos sinaliza que a amizade não se trata de um ato super-heróico, onde devemos ajudar a todos sem perceber que também precisamos de ajuda. Uma das lições mais valiosas que eu tiro das minhas amizades é a de aprender a acolher os carinhos que me são dados. Acolher o que o outro tem para nos dar pressupõe de nós humildade de nos reconhecermos vulneráveis e necessitados desse afeto humano. Quando somos amigos de verdade, nós amamos e nos deixamos amar.

É claro que as pessoas que são um pouco mais introvertidas terão um pouco mais de dificuldade. Mas qualquer um de nós é capaz de ter uma postura de um pouco mais de abertura e simplicidade para permitir que o outro possa nos agregar com o seu próprio jeito e com a sua própria visão. Cada um de nós tem um tratamento particular, que pode iluminar o outro. E quando experimentamos esse enriquecimento, temos o desejo de fazer o mesmo pelo outro.

Laura: Eu já passei por grandes maus bocados em supostas amizades. Pessoas que apareciam com o pressuposto de querer o meu bem, mas que no final apenas me usavam e me buscavam como bem queriam. Isso gerou várias defesas em mim, criando um instinto de desconfiança ou barreira com qualquer pessoa nova que aparecia em minha vida.

Também vi como passei a cobrar mais das minhas amizades, numa espécie de “tudo ou nada”. Precisava provar que aqueles que estavam em minha vida eram pra valer, e criei expectativas muito altas para qualquer ser humano. Como eu depositava demais, eu esperava demais. Deixei de entender que o cerne de uma amizade está na gratuidade.

Com o tempo, fui colocando cada coisa em seu lugar. Fiz as pazes com as minhas feridas, deixando de responsabilizar amigos inocentes por elas. Defini os limites e compreendi que a gratuidade mútua está em amar sem cobrança, receber sem espera. O amor não cobra, não manda nem subjuga. Ao contrário, ele nos torna mais livres para sermos quem verdadeiramente somos, buscando que o outro seja sempre assim também. E como sou grata aos amigos que me mostraram esse real caminho do amor fraterno!

Bela: Pessoas não são dinheiro. Não são comida. Não são objetos. São seres humanos como eu e você, e certamente não existem para nos recompensar ou satisfazer de alguma forma, mas para amarem e serem amadas. Que sempre nos lembremos disso em nossas relações com os demais.

Matheus: Eu sou um péssimo amigo — eu acabo me isolando facilmente, não mando mensagem, não chamo para sair, etc. Apesar dessa distância, ainda tenho um sentimento forte de amizade e consideração com várias pessoas.

Mesmo sabendo que não sou o melhor amigo do mundo, sei que tenho amizades verdadeiras, porque a amizade real não demanda nada, apenas oferece. Meus amigos sabem que podem contar comigo em qualquer situação, mas se a nossa relação dependesse de demonstrações constante de amizade, não seríamos mais amigos.

Falo isso porque vivemos em um mundo onde “todos têm que te dar algo”. Alguém é seu amigo até o momento em que essa amizade perder o valor ou a serventia para você. Namorar só até passar a “vontade”. Um casamento vai até quando “um fizer bem para o outro”. E assim as relações perdem o sentido, se tornam uma troca de favores, que é o contrário de uma amizade: a entrega sem esperar nada em troca (mas não vá achando que você pode fazer qualquer coisa, não se importar com os outros, e esperar uma amizade de alguém).

Idem Velle, et Idem Nolle

Quanto mais importante é o que nos une, maiores serão os vínculos que dali podem surgir. Ter os mesmos valores, buscar as mesmas coisas unem os nossos corações. Primeiramente, a identificação nos oferece uma base comum e, em segundo lugar, contribui para que os mesmos desejos se perpetuem no tempo e no mesmo caminho.

Gabriela: Apreciar as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas acaba sendo um bom indicador sobre o tipo de pessoa com quem tendemos a nos relacionar mais profundamente. Principalmente diante das contrariedades da vida.

Nem sempre a amizade é automática. Muitas vezes precisamos ser pacientes, ir ao encontro do outro, abrir nosso interior, criar ambientes em que as pessoas possam desenvolver sua personalidade, mostrar quem realmente são, expor suas preocupações, alegrias e tristezas. Esse compartilhar/criar um lar abre portas, e é inevitável que uma experiência não toque pessoalmente o outro e esse desenvolva ali relações pessoais.

Quanto mais eu busco viver as minhas amizades de forma autêntica, mais amadureço na minha identidade pessoal. É inserida no tecido social que eu consigo me explicar e desenvolver os meus afetos.

Laura: Uma amizade verdadeira não permite máscaras. Você precisa ser quem você é, para que o outro seja quem ele de fato é. Apenas assim vocês poderão criar laços fortes e firmes para a vida toda. Assim como no amor conjugal, não há espaço para mentiras no amor fraternal.

Aqui vemos como há um risco em jogo: o de se abrir, para ser rejeitado. Mas o outro também deve fazer isso por você. É na vulnerabilidade e na franqueza que encontramos a nossa maior força. A partir do momento que reconhecemos essa certeza no outro, conquistamos léguas de distância em confiança, segurança e maturidade. Ao encontrar alguém com quem podemos compartilhar sonhos e ambições, somos capazes de conquistar o melhor da nossa humanidade. É na solidez de valores genuínos que construímos laços eternos.

Bela: É reconfortante olhar para a nossa vida e ver que estamos rodeados de pessoas com as quais nos identificamos e com quem podemos compartilhar nossas ideias, valores e pensamentos sem ter medo de ser julgado ou descartado. Isso nos faz melhores, aumenta o amor e a identificação com os nossos ideais e valores. Se, ao contrário, escolho pessoas para ter ao meu redor que não compartilham dos mesmos ideais, posso acabar me perdendo em ambientes que me tiram da minha essência, e me fazem perder o rumo que escolheria seguir caso estivesse rodeado das pessoas certas para mim.

Matheus: Existe uma provérbio antigo: “similis simili gaudet” — “o semelhante regozija-se com o semelhante”. Nós estamos acostumados a ouvir que opostos se atraem, mas apenas se atraem até se repelirem. Seus amigos mais próximos são pessoas que, no geral, têm gostos semelhantes ao seu e isso é natural.

Vamos a um caso comum: você já deve ter visto alguém falar “fulano e fulana tem tudo a ver, eles dariam um casal muito bom”. Agora quantas vezes você já ouviu falar “fulano e fulana são totalmente diferentes um do outro, deviam namorar”?

O mesmo serve para a amizade, a alegria está no semelhante. É claro que cada pessoa é de um jeito e você terá amigos dos mais variados tipos, mas a atração está nos pontos de convergência e não na oposição.

Os desejos de posse e a amizade

Quando uma amizade é autêntica, ela tenta não se misturar com os desejos de posse do outro. A amizade sincera sempre acaba formando mais amizades. Segundo C. S. Lewis, este é o menos ciumento dos amores. Por isso é preciso ter um amor profundo pela liberdade alheia, evitando que se caia na rigidez.

Na amizade, o amor, quando se distribui, não significa remover. E certas maneiras como nos expressamos podem atrapalhar ou dificultar no amadurecimento das relações de amizade. De acordo com Fernando Ocáriz, a felicidade não depende dos sucessos que alcançamos, mas do amor que recebemos e do amor que damos.

Gabriela: Nas minhas amizades, sempre experimentei essa fecundidade. Através dos amigos, sempre fui conhecendo outros amigos. É a partir deles que aprendi a desfrutar da companhia de outras pessoas, ainda que eu não chegue a ser próxima de todas. É nessas relações que também experimento por muitas vezes ser insubstituível, pessoas para quem eu sempre quero voltar aconteça o que acontecer.

As amizades me proporcionam esse compartilhar com os outros que me leva não só a amar os outros, mas também amar com os outros. Crescer nessa liberdade da amizade demanda de mim uma reforma constante do meu próprio caráter, de maneira que eu possa me tornar amável e construir ponte com os outros. Existem infinitos modos de ser um bom amigo.

Laura: Se uma amizade te exige exclusividade, é porque tem algo de errado aí. Já vi muitas pessoas caírem nessa armadilha, e é doloroso presenciar como começam a se definhar em sua personalidade. Elas deixam de ser espontâneas e passam a sufocar o seu amor pelos outros. Aos poucos, o amor vai dando lugar para uma prisão. E uma amizade é exatamente o oposto disso.

Quanto mais livre o amor fraternal, maior ele se torna. Ele passa a cativar todos à sua volta, criando vínculos sem fim. E não há nada melhor do que encontrar alguém que busca os mesmos valores que você e seus amigos! Precisamos cultivar o que há de melhor em nós e nos outros. E esse caminho, necessariamente, passa pela porta da generosidade.

Bela: “O contrário do amor é a posse.” Essa frase ressoa em meu coração desde que a ouvi pela primeira vez. Ao contrário do ódio, da indiferença, a posse pode se confundir com um suposto amor muito facilmente. E ela em nada acrescenta para a amizade, mas a deturpa e nos faz mal.

Os desafios da amizade no mundo contemporâneo

Desenvolver uma amizade autêntica hoje em dia é muitas vezes desafiante. São muitos os ambientes excessivamente competitivos o que leva a uma mentalidade desconfiada, pragmática, mesmo que externalize uma boa educação. É como se corrêssemos o risco dos outros tirarem proveito de nós.

Laura: Vivemos num mundo de aparências e precisamos ter plena consciência disso. Afinal, nós podemos ser os próximos a cair em alguma armadilha do visual. Precisamos ser vigilantes e atentos ao que está em nosso coração. Todos temos falhas e aspectos a melhorar, e é isso que de fato nos une numa amizade.

Se você busca alguém para ser o seu amigo pela sua reputação, esqueça. Nessa premissa, você não está buscando o outro pelo que ele é. E pior: você está apenas tentando suprir fins egoístas de imagem pública e vaidade. Um real amigo é aquele que você pode se mostrar por inteiro, sem penalidades ou perdas. Compreenda que uma amizade firme é aquela sustentada por verdades e amadurecimentos mútuos.

Bela: Olhar o outro como um irmão a quem devo fazer o bem. Valorizar os pontos fortes, as boas características do outro, e assim encontrar razões para admirá-lo e querê-lo bem. Daí podem nascer boas amizades, verdadeiras. Precisamos tirar essa ideia da cabeça de que o outro é uma ameaça ou alguém que tem algo a oferecer.

Não é assim que deveria funcionar a vida. A partir do momento que me decidi por olhar para o outro com olhos desarmados, munidos apenas de uma vontade de procurar as coisas boas nele, minhas relações interpessoais tiveram uma melhora significativa que ressoaram na minha própria relação comigo mesma.

Matheus: “O golpe tá aí, cai quem quer”. Quando todas as suas amizades têm algum tipo de interesse por trás e você cria uma expectativa de ganhar de volta aquilo que você está oferecendo, cada relacionamento realmente se torna um eventual golpe, uma eventual traição.

A verdadeira amizade está no na entrega e no amor que não espera nada, apenas ama.

Gabriela: É óbvio que não podemos ser ingênuos, mas esse tipo de ambiente muitas vezes precisa de uma mudança. Essa mudança precisa começar de dentro, por pessoas que vivam de forma diferente e demonstrem o seu jeito de viver. Para atingir determinados objetivos na vida, não precisamos gritar, pressionar, enganar ou tirar proveito do outro.

Criar ambientes propícios, para que a amizade possa se desenvolver de maneira autêntica, demanda de nós serenidade, evitando que sejamos contaminados por estresse excessivo, ativismo ou dispersão. É importante não confundir o diálogo próprio da amizade com a argumentação filosófica, jurídica ou política.

Um diálogo amistoso não significa convencer o outro de nossas ideias, inclusive quando nossas ideias forem conclusões de uma formação. Isso não significa não chamar as coisas pelo seu nome ou não discernir o bem do mal. Mas o nosso raciocínio só tem valor quando se parte de um princípio ou autoridade em comum.

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Gabriela Vieira
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Colérica sangue nos olhos, apaixonada por uma boa conversa e um cafézinho. Entusiasta quando o assunto é arte, política, literatura, música e filosofia.