Você está sendo produtivo?

Matheus Marques
Essentia
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5 min readMay 14, 2020

Já terminou os vários cursos que planejou fazer? Leu todos os livros da estante? Colocou em dias os filmes e as séries? Retomou de vez aquele hobby antigo que estava esquecido? Está aprendendo algo novo todos os dias? E aí, conseguindo ser produtivo? Talvez não, e não há problema algum nisso.

Imagem por Carl Heyerdahl/Unsplash.

Eu coloquei sobre mim, assim como você também deve ter feito, uma grande expectativa do que eu deveria fazer na quarentena. Apesar do horário de trabalho continuar o mesmo e surgirem algumas obrigações domésticas a mais, “tenho mais tempo livre, vou conseguir fazer muitas coisas”.

Consegui fazer algumas. Fiz alguns cursos, aprendi mais sobre finanças, voltei a tocar violão. Mas, nem de longe, fiz tudo aquilo que planejei no começo do isolamento. Antes, me cobrava. Hoje, estou tranquilo com isso. Te explico o porquê com a mesma história que me fez mudar de ideia.

Em setembro de 2015, a cantora americana Kina Grannis iniciou uma turnê internacional por países do sudeste asiático. Após o primeiro show na cidade de Jakarta, capital da Indonésia, quando a banda ainda estava no palco, oficiais de imigração se aproximaram, pediram os documentos de todos e conduziram músicos e produtores para a agência de imigração do país.

Segundo as autoridades, o visto que eles possuíam não permitia a realização de “atividades musicais”. Kina e sua equipe foram avisados que estavam trabalhando ilegalmente no país, que estavam sendo acusados de “fraude de vistos” e que passariam por um julgamento. O julgamento poderia levar até 9 meses para começar. Eles também foram informados que a pena para o crime poderia chegar a 5 anos de reclusão.

Kina Grannis e equipe no escritório da Agência de Imigração. Fonte: Tumblr.

Em resumo, o grupo ficou 100 dias isolado em um hotel na cidade. Sem documentos, em um país em que desconheciam a língua e a cultura, enquanto esperavam notícias de um julgamento que poderia deixá-los presos por vários anos.

Cerca de duas ou três semanas depois do início da quarentena, eu estava assistindo uma live da Kina Grannis e ela respondeu algumas perguntas entre as músicas. Uma das perguntas foi: “Kina, você que já passou por um isolamento forçado, o que você tem de dica para quem está passando por isso agora?”.

Aqui entra a parte principal deste texto. Ela respondeu algo que eu jamais iria pensar: “Hoje, olhando para trás, eu vejo que as coisas mais importantes que eu fiz foram as coisas menos importantes”. Ela citou duas atividades em específico, tricô (que ela nunca mais fez) e aprender espanhol (que ela não aprendeu).

Admito que fiquei alguns dias com essa ideia na cabeça sem entender muito bem o que ela quis dizer. Ela compôs um EP durante esses dias. Ela fez diversas outras coisas importantes. Como o menos importante é o principal?

Essência!

Conversando com a equipe do Essentia sobre esse tema, a Gabriela Vieira, que também é autora da publicação, me falou sobre saberes úteis e inúteis. Existe aquilo que é útil, no sentido de que serve de meio para algum fim, e aquilo que é inútil, ou seja, não instrumentalizável. Isso pode ser aplicado a conhecimentos, saberes, ações e ao próprio pensamento.

Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, contanto que não a admire. A única desculpa de haver feito uma coisa inútil é admirá-la intensamente.
Toda a arte é absolutamente inútil.

Oscar Wilde

A arte é inútil. A lógica é inútil. Muitas das coisas que eu faço ou aprendo são inúteis. Não no sentido de que tenham menos valor, mas são inutilizáveis. Eu posso usar um pincel para pintar uma obra de arte, mas a obra não é útil, pois ela é um fim em si mesma.

Qual a utilidade do amor? E da beleza? Da amizade ou da fidelidade? Nenhuma! E isso é muito bom.

Porque aquilo que não é útil constrói nosso caráter, nossa essência. É o que nos eleva como seres humanos.

Assim, podemos dividir os conhecimentos em dois: os aplicados ou transitivos, que saem de nós, e os liberais ou intransitivos, que ficam dentro de nós e nos aperfeiçoam. Por isso a resposta para a pergunta “como o menos importante é o principal?” é “essência”. É o que está dentro de nós. Imagine quão triste e sem vida seria o mundo sem as artes inúteis da arquitetura ou da culinária.

Aí está a importância do inútil para este tempo de quarentena. Já reparou, por exemplo, que é possível saber mais ou menos o gosto musical de muitas pessoas pelo jeito delas? Porque a música, um conhecimento liberal e plenamente inútil, está diretamente relacionado a quem nós somos.

“Todas as coisas mais importantes da vida são inúteis: amor, amizade, devoção, paz — essas são coisas que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer delas. Sim, nós precisamos de coisas inúteis uma vez que precisamos aprender como encontrar valores intrínsecos. E então o mundo tem um significado para nós e não apenas uma utilidade”.

Sir Roger Scruton

É claro que não podemos reduzir a importância dos conhecimentos aplicados. Temos que aproveitar o tempo para desenvolver aspectos profissionais, aprender, ter objetivos e metas. Não existe saber intransitivo sem o transitivo. O que não podemos é colocar todo nosso esforço apenas em uma das opções.

Estamos colocando sobre nós mesmos expectativas de um mundo que já não funciona do mesmo jeito. E que talvez nunca volte a ser exatamente como era antes da quarentena. Um mundo que te cobra, a todo momento, ser útil. Por isso estou “tranquilo”. Porque a quarentena não é um momento apenas para desenvolver o que sei ou o que faço. É a ocasião perfeita para aprimorar o que sou.

Aos que ficaram curiosos, Kina Grannis e sua equipe foram considerados culpados após dois dias de julgamentos e sentenciados a 8 meses de liberdade condicional, mas puderam cumprir a pena nos EUA. Cada um teve que pagar uma multa de 35 mil dólares + despesas de 100 dias de hospedagem no hotel.

Você pode ler o relato completo da Kina Grannis em seu blog: “100 days in Jakarta” (inglês). Recomendo a leitura dos 25 pontos que ela coloca ao final do texto sobre o que aprendeu com a experiência.

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Matheus Marques
Essentia

Publicitário, jornalista e designer. Escrevendo sobre investimentos e mercado financeiro para o Finis. Discutindo sobre o que nos faz humanos no Essentia.