fim de festa

são paulo, 2021

Mariana Cestari
querida mari
9 min readJul 9, 2023

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Eu aprecio intensidades e superlativos. Amo corações partidos, pois viram histórias de bar: daquelas contadas com um copo de cerveja numa mão e um cigarro aceso na outra. Histórias que criam conversas, findam maços e pedem mais uma dose. Do tipo inacreditável, com exageros, drama e um quê de imprudência. Amo em excesso, com idolatria, raiva e cólera. Há quem diga que sou demais; transbordo e inundo sem aviso prévio.

Era segunda-feira de manhã e, em breve, precisaria retornar a vida comum, na qual sinto-me seca, trabalho olhando para a tela de um computador e participo de reuniões morosas. Mas, naquele instante, a descrição me compreendia por inteiro: sentia-me encharcada e pesada, molhando a cama estranha na qual adormeci, deixando poças pelos cantos de um apartamento desconhecido. As paredes pareciam mais estreitas, o teto mais baixo. A luz quente se esgueirava pelas frestas da janela e iluminava nossas roupas amontoadas no chão, minha pele contra os lençóis amarrotados e o cinzeiro cheio no criado mudo. Não me lembrava do quarto como esse lugar mundano, com cheiro de gente, de suor e de cigarro barato. Afundei ainda mais nos travesseiros, fechei os olhos e me afoguei na minha ressaca.

***

Quando o vento e o mar não entram em acordo, as ondas se formam sobre si mesmas, deglutindo umas às outras. Esse não era o meu tipo de ressaca, mas eu podia sentir os meus pensamentos atravancados e os meus sentimentos se formando na direção oposta, agitando as minhas memórias. Fui arrastada diretamente para alguns dias antes: ainda sentia o meu coração partido, a ferida aberta. Tudo me doía e, cada vez que narrava os acontecimentos, a história ganhava novas cores, texturas e sensações. Deixava cada amigo, cada ouvinte, levar consigo um pedaço novo de tudo que ainda havia de amor em mim. Seu crescimento orgânico não era fruto de uma imaginação fértil, ou de memórias reprimidas. Não eram equações matemáticas, uma linha do tempo ou um conto com começo, meio e fim; eram um emaranhado de sensações, decisões e acaso e, assim, os novos ramos surgiam enquanto eu falava, enquanto eu pensava, enquanto assistia à história de novo e de novo.

Eu e Carol, minha colega de apartamento, acordamos cedo, passamos um café e colocamos pãezinhos no forno. Assistimos o sol nascer e o calor de Dezembro invadir o apartamento pelas janelas abertas. Eu contava do término recente e minhas palavras jorravam, gordas e saborosas, preenchendo a boca e o cômodo. Dias quietos como este (e histórias de fim como aquela) me inspiram.

– Você é mais você quando está de coração partido. É errado dizer isso? — ela perguntou — Parece que fica mais inteira.

– Não — respondi, lançando-lhe um olhar compreensivo. Eu já sabia: nunca foi sobre como doía, e sim sobre como eu podia amadurecer em dias, sobre como parecia encarar um oceano inteiro. Tudo parecia tão vasto e tão possível e tão cheio de espaços para preencher. Acrescentei: — Quando o amor acaba, me sinto mais completa, mesmo que a vida pareça mais vazia.

Deixamos um silêncio confortável cair entre nós: bebíamos o nosso café e passávamos manteiga no pão. Era corriqueiro e, mesmo assim, tinha sabor de sonho.

– Você quer ir pra uma festa na casa de um cara do trabalho? — Carol interrompeu.

Ponderei por poucos segundos e concordei: — Claro, vamos sim.

– Vai ser bom, amiga — ela profetizou — Eu consigo sentir.

***

E eu também sentia.

Encontrei a Carol na Praça Roosevelt, e ela estava linda. Parecia uma fada, ou o tilintar de sinos de vento, ou as duas coisas. A noite estava quente e a brisa morna me lambia, deixando o úmido rastro de saliva suada típica do verão. Minha mini saia preta delineava minhas pernas e a chemise de cetim parecia reluzir com a luz do trânsito. Sentia-me nova em folha. Atravessamos a rua de mãos dadas, em direção ao prédio antigo, sem porteiro e com um elevador caindo aos pedaços. Subimos, sorrindo e sentindo a antecipação da noite borbulhar.

Quando chegamos, o apartamento já estava cheio de gente, iluminado apenas por fitas de LED azuis e roxas. Cheirava a cigarro e festa, mas tinha cheiro de novidade e expectativa. Havia corpos por todo canto, se beijando, se entrelaçando e dançando em perfeita sintonia. O apartamento parecia vivido, as paredes tinham recados e a geladeira que abrimos para pegar nossas primeiras latinhas de cerveja estava cheia de ímãs de viagens.

Eu o vi pela primeira vez depois de alguns goles, na pista de dança improvisada. Era esguio, não muito alto, nem muito baixo, tinha a pele morena e os cabelos encaracolados. Refletia tons de lilás e seu nariz aquilino criava uma sombra escura em um dos lados do rosto. Ele conversava com uma amiga e a fazia rir. Continuei olhando até me deixar ser puxada para a cozinha por minha amiga.

– ‘Cê tá fazendo de novo, Pilar, — Carol sussurrou — Tá caçando amor pra amar.

Ri.

– É da minha natureza. — retruquei, revirando os olhos e enchendo os copos de plástico com vodka e refrigerante.

Viramos de uma vez e salpicamos os cristais amargos na língua. Deixamos o rush subir por nossas veias e voltamos para o centro da festa. Dancei pertinho da minha amiga, passando os dedos pelo meu cabelo e pelo rosto dela com os sentidos aguçados — a noite acontecendo em flashes. Estava completamente imersa na batida eletrônica da música, deixando-me existir no seu ritmo.

Então, como se estivesse escrito nas estrelas, nossos olhos se encontraram. Brincamos de ser blasé, nonchalant: movíamos os olhos rapidamente, deixávamos eles se conectarem por poucos segundos e, então, retornávamos para nossas rodas de amigos, para nossas conversas, danças e latinhas de cerveja. Aos poucos, eu e ele chegávamos cada vez mais perto, até nossos dedos encostarem um no outro — delicados como o farfalhar de uma borboleta, elétricos como uma tempestade de raio.

Trocamos “olás” que mais soavam como um pedido de consentimento e, repentinamente, já estávamos nos movendo com os lábios. Sua língua dançava no meu céu da boca e transformava o ato de beijar em algo tão perigoso quanto Ícaro voando próximo ao Sol. Havia uma diferença gritante, entretanto: estávamos prontos para — e, além disso, desejávamos — queimar em nosso calor. Queríamos deixar arder, sem pudor. Estávamos, enfim, unidos, conectados por batidas rítmicas entre coxas e barrigas. Por um instante, meu corpo pareceu ter sentido falta do dele, mesmo nunca o tendo encontrado antes.

Nada pode interromper esse momento. pensei. Aqui, somos só eu e ele.

Suas mãos deslizavam pelo meu corpo devagar e constante, explorando cada centímetro coberto. Os diferentes tecidos criavam sensações gostosas e os pelinhos no meu braço estavam arrepiados, deliciando-se com o coquetel tátil.

Novamente, me peguei ouvindo meus pensamentos:

Como você vai se sentir sobre isso quando estiver sóbria? pensava. A voz na minha cabeça falava como se soubesse exatamente como eu me sentiria quando o momento passasse. Como se já tivéssemos assistido esse filme antes e detestamos o final. Até ontem, tudo doía, tudo eram juras de amor eterno para outra pessoa!

Espantei a voz e o puxei para a cozinha, onde pegamos mais cerveja, viramos mais shots e colocamos cristais embaixo da língua, nos livrando do gosto amargo com mais um beijo e um cigarro. Tudo parecia um sonho febril e, bem ali, naquele cômodo apertado, cheio de fumaça, decidi acreditar que, assim como um resfriado, precisava ser vivido. Para chegar ao outro lado, bastava convalescer. Eu já havia me preparado para a dor de um grande coração partido, mas aqui poderia habitar o microcosmos de um amor com data e hora para acabar, com lugar para acontecer. Não havia nada a fazer além de esperar que me acertasse. A dor seria familiar e confortável, diferente da nova história que não parava de crescer lá fora.

Saímos juntos da cozinha e nos sentamos em uma poltrona de veludo verde perto da janela através da qual podíamos assistir o trânsito da cidade se extinguir aos poucos. Ele segurou o meu queixo delicadamente e perguntou:

– Você é amiga da Carol?

– Sim, ela trabalha com o Lucas, você sabe.

Ele riu.

– Sei. — olhando na direção do outro rapaz, completou: — Também conhecido como meu colega de apartamento.

– Ah. — fiz, mordendo o lábio inferior. Do seu colo, contemplava as sombras no seu rosto e o olhava profundamente. Era tarde demais para perguntarmos o nome um do outro, mas parecia inadequado conversar sobre algo diferente de breves apresentações. Por isso, optei pela rota mais simples e beijei seu pescoço, deslizando a língua pelas pintinhas em sua jugular.

Ele fechou os olhos e suspirou, deixando uma das mãos repousar na base da minha coluna. Quando abriu os olhos, beijou a minha bochecha delicadamente e usou a outra mão para desbloquear seu celular.

– Só estou vendo as horas. — ele explicou.

Apoiei o queixo em seu ombro e voltei os olhos para a tela brilhante também. Meu sexto sentido dizia que havia algo além: a imagem de fundo não o entregava, nem os previews de mensagens do WhatsApp. Uma foto de praia e mensagens de um contato sem emojis ou apelidos fofos. Mas eram muitas e eram preocupadas, oscilando entre “devo ir para a festa?” e “há algo que você queira me contar?”. Virei o rosto para longe, como se, de alguma forma, afastar o olhar pudesse apagar da minha mente as recém-descobertas informações. Consegui afastar os pensamentos desaprovadores mais uma vez e admiti a transgressão.

Isso tudo termina de manhã, estamos dançando sozinhos, eu e a minhas fantasias, ele e sua infidelidade. justifiquei para mim mesma, perdoando-me pelo que faria a seguir.

Beijei o lóbulo da sua orelha e sussurrei:

– Já tá tarde. Onde é o seu quarto?

Ele apontou para o mezanino com o queixo enquanto digitava rapidamente em seu smartphone e logo o bloqueou novamente, colocando-o no bolso da calça. Levantamos juntos, com os dedos entrelaçados e subimos as escadas rapidamente, deixando a temperatura entre nós aumentar outra vez. No quarto, finalmente, tudo parecia sensual e convidativo. Os lençóis eram escuros e os travesseiros especialmente macios. Fechei os olhos por alguns instantes, desarmando-me diante daquele calor, aspirando o odor de patchuli e perfume masculino. Sinto-o chegar mais perto, lascivo, intenso e com seus próprios cristais de colocar embaixo da língua. Seu beijo é amargo e ao deslizar minhas mãos para baixo, o sinto tão firme quanto os diamantes que colorem as sombras da nossa madrugada.

Às 5 horas da manhã, já estamos desaparecendo. Estamos exaustos.

Podemos continuar com o jogo? perguntei para mim.

Mais uma taça de vinho, mais cristais embaixo da língua e a noite vira dia apesar de ainda parecer noite.

Sim, entendi. podemos.

Como toda forma de amor, é intenso, verdadeiro e único enquanto dura: o primeiro beijo com sabor de pólvora, fogos de artifício in natura, o primeiro toque faz subir o calor de um incêndio. No começo, há uma efervescência crescente, tudo é primeiro. É viciante: cada gole exige mais um e outro e outro e outro. Porque quero viver mais e sentir muito, muito mais.

***

Ele não deixou comigo o som da sua risada ou o tom da sua voz. Não trocamos juras calorosas numa noite fria ou andamos de mãos dadas pela cidade. Não sei seu sobrenome, ou onde ele trabalha, ou o seu sabor de sorvete preferido.

Ele deixou um recado na porta, pedindo para apagar as luzes quando saísse, e colocasse a chave embaixo do carpete de entrada. Deixou o café na prensa francesa e um pão de fermentação natural sob a mesa da cozinha. Deixou meus ouvidos apitando no ritmo da música que ouvimos repetidamente enquanto nos amamos no final de semana. Assim mais uma história acabou, sem nunca ter começado de fato.

***

Sempre quis entender o porquê de amar assim. Amar como se fuma um cigarro: rápido e devastador, acabando sempre em cinzas. Porque se perder em todo beijo, porque se deixar levar por todo corpo que encontra o meu e porque juntar a coragem de fazer tudo de novo? Já fiz terapia, li poesia, falei de amor com gente velha e nova, com quem eu conhecia e com quem eu nunca vi na vida, com quem eu já acreditei amar e com quem já me amou. Será que o faço só para ter novas histórias para contar? Será que esse furacão que sou é só para provar que ainda posso sentir mais? Que meu amor — minha potência de amor — não diminui ou se perde de boca em boca? Não sei, no final das contas, é um lado de mim que nada explica. Nem astros, signos, búzios, dados de I Shing ou cartas de tarô. O lado que deseja viver por inteiro e sem ressalvas, fazendo de tudo e falando demais. O lado de mim que toma as palavras de Maysa para si e tatua na alma que a dor de existir, se soluciona vivendo.

Quando deixei o apartamento, aquele gosto amargo já não era meu, a mágoa e o desalento do fim imaturo ficaram presos entre um “olá” trêmulo, latas de cerveja e cristais de colocar embaixo da língua. Aquela história havia se tornado dela (da protagonista das minhas histórias de bar).

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