A Queda da Biblioteca de Alexandria e a Casa das Musas

Arthur Marchetto
Estantário
Published in
6 min readApr 9, 2021
Uma gravura antiga que mostra um porto pegando fogo e, ao fundo, uma cidade também em chamas. No primeiro plano, um farol enorme. A gravura tem tons de cinza, azul, amarelo e vermelho.
Ilustração de Hermann Göll (1876) sobre o incêndio na Biblioteca de Alexandria

Biblioteca de Alexandria. Sempre me impressionou a grandiosidade da imagem que essas palavras evocam — e também o mistério subsequente de um fim causado por um incêndio devastador. De acordo com relatos tradicionais persas e armênicos, suas raízes teriam brotado em Alexandre, o Grande, que, inspirado por Assurbanipal, resolveu projetar seu próprio acervo.

Alexandre morreu antes de ver seu desejo brotar. Ptolomeu, seu amigo e sucessor, foi o responsável por irrigar e adubar o solo para que a Biblioteca de Alexandria nascesse. No entanto, com a chegada dos trabalhos de Aristóteles em seu acervo, eles se perguntaram: “Por que não criar uma biblioteca que pudesse guardar todo o conhecimento do mundo?”. E esse foi o ponto de virada.

Biblioteca de Nínive

A Biblioteca de Assurbanipal (ou a Biblioteca de Nínive) é considerada a primeira construção desse tipo. Ela foi encontrada no século XIX por arqueólogos ingleses, mas foi fundada pelo rei assírio Assurbanipal no século VII a.C.. Seu acervo reunia cerca de 22 mil placas de argila que versavam sobre diversos assuntos: matemática, geografia, astrologia, medicina, direito, religião e até relatos de aventuras e explorações.

A coleção foi destruída em 612 a.C., junto com a cidade, por babilônios, citas e medos. Acredita-se que a biblioteca foi devastada junto com um incêndio no palácio — o que fez com que os tabletes de argila fossem preservados, mas que teria acabado com tudo escrito nas placas de cera.

Segundo Alberto Manguel em seu livro A Biblioteca à noite, a grande diferença entre essas duas bibliotecas é que Alexandria modificou a ideia do que é uma biblioteca:

“Até a fundação da Biblioteca de Alexandria, as bibliotecas do mundo antigo eram ou coleções particulares das leituras de determinado homem ou armazéns governamentais em que se preservavam documentos legais e literários para consulta oficial. O impulso de instituir essas primeiras bibliotecas nasceu menos da curiosidade que da salvaguarda, e derivou da necessidade de consultas específicas, mais que do desejo de abrangência. A Biblioteca de Alexandria revelou uma nova concepção, que superou todas as bibliotecas existentes em âmbito e ambição”.

Em um vídeo publicado no canal Fronteiras do Pensamento chamado A Conquista do Tempo através dos Livros, Manguel explica como os Ptolomeus não buscavam uma conquista geográfica, mas uma conquista temporal: controlar passado, presente e futuro (Em 1984, George Orwell sintetizaria essa lógica com a frase: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”).

Os livros eram o caminho para realizar essa conquista. Qualquer coisa escrita que passasse por aqueles territórios era recolhida, analisada e armazenada — os navios que atracavam nos portos, por exemplo, tinham livros confiscados e copiados; pedidos de empréstimos corriam pela região; exemplares eram comprados pelo continente.

Conquista do tempo

Simbolicamente, o que a queda da Biblioteca de Alexandria nos mostra é a incapacidade de vencer o tempo. A impossibilidade de alcançar uma biblioteca que correspondesse ao mundo é um tanto óbvia já que, bem, uma biblioteca que armazenasse o mundo teria que abarcar, pelo menos, o próprio mundo.

O que é interessante nessa grandiosidade do projeto, abrindo um pequeno parênteses, é o fato de que uma construção tão imponente e com tamanha importância histórica tenha escassez de registros cotidianos. Os cronistas da época geralmente descreviam a cidade de Alexandria, os templos, como se viviam e, quando iam falar da Biblioteca de Alexandria, diziam: “bom, ela é tão famosa que nem precisamos falar dela”.

Não há registros de como a biblioteca era: a distribuição do espaço, organização dos materiais. Também não há um registro de como foi seu verdadeiro fim — gradual ou súbito, mas falaremos disso daqui a pouco.

O mais provável é que ela estivesse alocada no Museu (mouseion vem de Casa das Musas, filhas de Mnemosine, a deusa da memória), dedicado a todo tipo de conhecimento e às 9 Musas. Supõe-se de que a biblioteca era um grande corredor nesse museu, com diversas bibliothekai (termo que ainda não designava o cômodo, mas os nichos para os rolos). Além disso, quando sua construção se tornou pequena para seu acervo, parte dele foi transferido para o Serapeu de Alexandria, um templo dedicado a Serápis.

O Museu também abrigaria os pensadores e estudiosos, contratados para fazer o material circular, criar um registro e catálogo das leituras e até viajar pelo mundo em busca dos manuscritos mais raros. Estima-se que, no seu auge, entre 400 mil e 1 milhão de pergaminhos compusessem a biblioteca, incluindo autores famosos como Homero, Sófocles e Eurípedes.

Esses pensadores e estudiosos estavam ali não apenas para registrar e guardar os livros, em algum tipo de coleção ambiciosa e empoeirada, mas queriam manter o conhecimento vivo. Os livros seriam preservados infinitamente, em um eterno diálogo: compêndios, resumos, anotações. Um espaço de eco de experiências, de renascimento.

Como nos diz Manguel, os estudiosos de Alexandria nunca foram enganados pela natureza do conhecimento. “Sabiam que ele era a fonte de um presente em constante mutação, no qual novos leitores se dedicavam a velhos livros que se tornavam novos no processo de leitura. Cada leitor existe com o objetivo de assegurar uma modesta imortalidade a determinado livro. A leitura é, nesse sentido, um rito de renascimento”.

Como o paraíso borgiano manifestado na Biblioteca de Babel, a Biblioteca de Alexandria se tornou um espaço mítico de conhecimento infinito. Destruída e presa em nossa conjectura, a Biblioteca de Alexandria será sempre inigualável — pelo seu acervo infinito, é a única que poderia ter entre suas paredes a crônica de sua destruição (e seguinte ressurreição).

“Podemos vagar pelas estantes abarrotadas da Biblioteca de Alexandria, onde toda a imaginação e todo o conhecimento estão reunidos; podemos reconhecer em sua destruição a advertência de que tudo o que juntamos há de perder-se — mas também que boa parte do que perdemos pode ser reunido novamente” (Alberto Manguel, A Biblioteca à noite).

Fogo e Ruína

Antes do detalhamento da catástrofe, é preciso lembrar que Alexandria era um grande Centro. O Farol de Alexandria, por exemplo, era uma das mais altas construções feitas pela humanidade e uma das Sete Maravilhas do Mundo. Além de ser um grande centro de produção de papiro. O próprio Museu era parte de um projeto científico maior e ambicioso, com jardim botânico, observatório astronômico, exposições, etc.

Sua pressão econômica era tão forte que, na tentativa de inibir seus rivais, os ptolemaicos, como eram chamados os bibliotecários, proibiram a exportação do papiro. (Medida que foi respondida pelos bibliotecários de Pergamo com a invenção de um novo material, chamado pergamenon… ou pergaminho).

No entanto, ao contrário do que costumamos imaginar, o fim da Biblioteca de Alexandria tem menos a ver com um incêndio devastador. Não que ela não tivesse pegado fogo incidentalmente quando Júlio Cesar incendiou os navios em um porto, mas grande parte de suas obras foram salvas.

A verdade é que sua importância esmaeceu e seu declínio foi repleto de nuances, como o expurgo de intelectuais, o enfraquecimento do regime e futura absorção ao Império Romano, a escassez de investimentos e diversas outras destruições físicas da Biblioteca.

Em tempos como o nosso, não é difícil traçar paralelos entre a história de Alexandria e o acesso ao conhecimento, sua valorização e lugar na sociedade nos dias de hoje. Sob as ruínas da Biblioteca, o que nos resta é habitar um espaço onírico de prateleiras infinitas.

Em tempo, minha inquietação surgiu ao ler uma reportagem da The New Yorker sobre como os museólogos estão preocupados em contar a história da Covid-19 nos museus. A preocupação em identificar objetos que sejam representativos do momento em que estamos passando e que narram as inquietações e medos que estamos passando me pareceu muito instigante.

Obrigado por ler até aqui!

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.