Resenha: O Cemitério, de Stephen King

Finitude de tudo

Arthur Marchetto
Estantário
5 min readFeb 17, 2017

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Sinopse: Louis Creed, um jovem médico de Chicago, acredita que encontrou seu lugar naquela pequena cidade do Maine. A boa casa, o trabalho na universidade, a felicidade da esposa e dos filhos lhe trazem a certeza de que fez a melhor escolha. Num dos primeiros passeios familiares para explorar a região, conhecem um “simitério” no bosque próximo a sua casa. Ali, gerações e gerações de crianças enterraram seus animais de estimação. Para além dos pequenos túmulos, onde letras infantis registram seu primeiro contato com a morte, há, no entanto, um outro cemitério. Uma terra maligna que atrai pessoas com promessas sedutoras e onde forças estranhas são capazes de tornar real o que sempre pareceu impossível.

The smell of death is all around,
And the night when the cold wind blows, No one cares, nobody knows.

Ramones, Pet Sematary

Originalmente lançado no fim de 1983, O Cemitério foi mais um dos livros quase não publicados de Stephen King. Considerado pelo próprio King como seu livro mais medonho, o manuscrito foi deixado de lado e resgatado por sua esposa, Tabitha King. O livro, no entanto, agradou os fãs. Teve, em pouco tempo, uma tradução para o português, lançada em 1985, e uma adaptação cinematográfica, lançada no Brasil em 1989, chamada O Cemitério Maldito. Desde 2013, a editora Suma de Letras é a responsável pelas novas edições do livro, com 424 páginas.

O personagem principal da história é um médico do campus da Universidade do Maine, Louis Creed. Recém-chegado no estado, o começo do livro narra a mudança de Louis e sua família para a nova casa, na margem da Rodovia 15. Separados pelo um intenso fluxo de caminhões, eles conhecem Jud Crandall, um velho que mora na casa da frente.

Nascido e criado na região, Crandall apresenta as “maravilhas” do lugar seguindo a trilha dos fundos da casa recém ocupada. A primeira parada é um morrinho que permite visualizar o lugar quase por completo; a segunda, continuando a trilha, é o simitério de bichos. O simitério é um lugar sombrio, com neblina baixa e estranhamente organizado – as coisas se tornam ainda mais sinistras quando Crandall revela que a trilha está sempre conservada devido ao intenso fluxo de crianças, principalmente no período de férias. É nesse lugar que descobrimos que Rachel, esposa de Louis, tem medo da morte; É aqui, também, onde os dois filhos pequenos de Louis, Ellie e Gage, têm seu primeiro contato com a morte.

Depois deste primeiro contato, a amizade das duas famílias se intensifica ao longo do livro. Louis e Jud se encontram quase todas as noites para tomar uma cerveja. Às vezes, a esposa de Jud, Nora Crandall, acompanha os dois. Assim, a rotina de Louis se torna clara: trabalhar na enfermaria do campus; escrever artigos médicos; passar um tempo com a família; tomar cerveja com Jud. O ritmo seria quebrado no Dia de Ação de Graças. Sozinho em casa, Louis recebe um telefonema de Jud Crandall: o gato de Ellie, Winston Churchill, foi atropelado por um caminhão.

Diante do abatimento de Louis e de seu receio sobre os sentimentos de Ellie, Crandall insiste que o enterro do gato aconteça na mesma noite, no simitério. O que nós descobrimos é que o terreno esconde um segredo, uma trilha mágica que leva a um cemitério místico e sagrado, o Cemitério Micmac.

A tribo dos Micmacs vivia pela região, mas, segundo as lendas, dali saíram devido à presença de um espírito maligno canibal, o Wendigo. Nesse cemitério sagrado, tudo que era enterrado retornava à vida. No entanto, nunca era um retorno completo - era como se voltassem com conhecimento do mundo posterior; voltavam agressivos, cruéis.

Já alertado por um paciente do campus em um presságio, Louis Creed sabia que, se ultrapassasse os limites do simitério, desencadearia uma série de desgraças em sua vida. Mesmo assim, ao tentar proteger sua filha da morte do gato, Louis ultrapassa os limiares; não é preciso dizer que, ao tomar essa decisão, as tragédias são desencadeadas. Agora, só lendo para saber.

(…) — Sua destruição e a destruição de tudo que o senhor ama está próxima, doutor.

Pascow estava muito perto e Louis podia sentir o cheiro da morte que havia nele.

O Cemitério, Stephen King, p.129.

Logo no começo do livro ficamos sabendo do que se trata. O romance é aberto pela frase “A morte é um mistério; o sepultamento, um segredo”, e é seguindo tal raciocínio que King escreve seu romance. Stephen nos apresenta a visão cristã, a pagã, a científica, a ingênua; nos apresenta personagens que lidaram com a morte diversas vezes, os que nunca lidaram, os que têm receio de encará-la. Mesmo assim, a faceta verdadeira da morte não é revelada sob a perspectiva de nenhum deles.

A escolha de Louis Creed como protagonista, um médico, serve como reforço para a narrativa. Sem utilizar de seus conhecidos personagens escritores, presentes em diversas obras, Stephen King faz um extenso trabalho de pesquisa para construir Louis e construir um personagem capaz de nos guiar pela totalidade do romance. Nos termos que King nos apresenta em Sob a Escrita, Louis e Stephen são honestos com a história.

Nesse contexto, o cemitério micmac, terreno místico atrás do simitério de bichos, dá um tom sobrenatural ao que pode ser interpretado como uma alegoria à sensação de luto. Seria a voz do Wendigo; algum poder maléfico? Ou o coração fragilizado de Louis Creed? Tudo parece plausível.

As crianças mantêm o poder da maioria dos livros de King, uma intuição sobrenatural, até mesmo profética. Ellie tem diversos sonhos ao longo do livro que servem de aviso para as desgraças futuras; Outra relação esmiuçada no livro é da paternidade. É basicamente essa construção de afeto que serve de combustível para os personagens; Relação de Louis e Jud; Rachel e Irwin, seu pai; Louis e Irwin, seu sogro; Louis e seus filhos, Ellie e Gage. Pais que enterram filhos.

— O solo do coração de um homem é mais empedernido, Louis — murmurou o moribundo. — Um homem planta o que pode… E cuida do que plantou.

O Cemitério, Stephen King, p.108.

Para uma parcela dos fãs, O Cemitério é considerado um dos livros de terror mais clássicos de Stephen King: macabro, sem finais felizes e recheado de más decisões que levam a situações piores que as anteriores. Além disso, existe um fator autobiográfico durante seu processo de criação: King passou por um experiência traumática de quase-atropelamento com um de seus filhos antes de escrever o livro. N’O Cemitério, a morte é presença constante e traz à tona concepções há muito formuladas: é apenas pela consciência da nossa finitude, da nossa morte, que temos a capacidade de refletir sobre nossa vida.

Mas há uma forte mensagem que o livro nos passa; é a mesma que os Ramones entoaram anos atrás:

I don’t wanna be buried in a Pet Sematary. I don’t want to live my life again.

Esse texto foi escrito pelo Clube de Leitura de Castle Rock. Grupo de discussão composto por Arthur Marchetto, Jonatas Aron, Mateus Murozaki, Pedro Dantas e Sandra de Paula. Você pode conferir a discussão na íntegra, clicando aqui.

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.