Resenha: A Hora da Estrela, de Clarice Lispector

A palavra muda e o narrador brasileiro moderno: “Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a si mesmo”

Arthur Marchetto
Estantário
6 min readMar 26, 2018

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A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (1999)

Rocco- 88p.

Quando seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem despontou por aqui, Clarice Lispector tinha apenas dezessete anos. No entanto, isso não impediu que o crítico Álvaro Lins pronunciasse, em fevereiro de 1944, que “nosso primeiro romance dentro do espírito da técnica de Joyce e Virginia Woolf” havia encontrado porto em Clarice.

Nesse sentido, seu trabalho destacava algumas das crises que a literatura moderna passou a abordar, como a do personagem-ego que continha todas as respostas e, consequentemente, a da fala narrativa e da velha função documental do romance. Essas questões estão intimamente ligadas à esfera íntima e dos questionamentos existencialistas que habitam o mundo de Clarice: um lugar repleto de provisoriedades, buscas e efemeridades. Nesses espaços, a verdade é sempre plural.

Além disso, a reflexão linguística se tornava uma preocupação no seu fazer literário e suas experimentações por esse caminho revelaram uma perspectiva em que o autoconhecimento e o aprimoramento pessoal se tornaram mais importantes do que a narrativa crua de um fato. Por isso, sua escritura denuncia fraquezas humanas e os receios e medos mais profundos que carregamos em nossa essência.

Dessa forma, podemos destacar três preocupações nas obras de Clarice: o desenvolvimento estético, filosófico e social. No primeiro caso, há uma tentativa de entender o gesto criador do escritor e, portanto, uma revisão sobre os limites da linguagem — como a presença da palavra muda dentro do texto, um silêncio que fala. Lispector também traz para o cenário literário brasileiro o fluxo de consciência e o uso das metáforas insólitas.

Em seu aspecto filosófico, há uma reflexão sobre as várias faces de uma verdade e o desenvolvimento de momentos interiores que, muitas vezes, se intensificam o bastante para romperem com a própria subjetividade e entrarem no terreno do metafísico, com a conexão com um único Ser. Essa faceta está ligada com as questões sociais que Clarice trabalhava em suas obras, majoritariamente a esfera feminina, mas não só.Em A Hora da Estrela, por exemplo, Lispector trabalha o lugar do romancista brasileiro moderno e também dos imigrantes nordestinos na metrópole carioca.

A história do livro deste livro é guiada pela alagoana Macabéa na cidade do Rio de Janeiro, pelo olhar curioso que o narrador Rodrigo S.M. tem sobre a existência dessa mulher deslocada e pela própria reflexão sobre o ato de escrever essa história. Como escreve Clarisse Fukelman, professora da PUC-RJ responsável pela apresentação do livro, “Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a si mesmo”.

“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho”.

Macabéa aparece na história como o oposto de um herói épico, uma vida sem a possibilidade de grandes feitos. Ela é descrita como uma “vida primária que respira, respira, respira” ou como “um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal”. Assim, sua história é resumida à sua sobrevivência quase inumana e a sua inaptidão com a linguagem. Segundo Fukelman, “o testemunho mais veemente de sua falta de posse sobre si mesma e sobre o mundo é a maneira como lida com a palavra. Ou ela se priva da palavra e permanece em um silêncio que não é opção, mas maneira precária de ser (…); ou ela fala em dissonância. Sempre se expressa inadequadamente ou mostra interesse por palavras e conceitos reveladores de sua condição existencial e social, mas que, descontextualizados, não a levam ao autoconhecimento”.

Rodrigo, ao contar a história de Macabéa, procura uma literatura sem falseamentos. Como seu carinho pela história de Macabéa frustra suas expectativas, ele parte pelo caminho da “palavra-pedra” do poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto, que se apaixonou por “fatos sem literaturas”, onde a “palavra tem que parecer com a palavra”.

Sendo assim, a narrativa apresenta um tipo de flash fotográfico como recurso para capturar o relance, a visão súbita que desarma e tenta apreender algo que resiste em ser descoberto. Isso porque o livro tenta deixar claro algo que é caracterizado por sua obscuridade, a escrita da palavra silenciosa, a Verdade. Para Clarice, essa verdade sempre foi um contato interior, inexplicável e inominável.

Escritor brasileiro moderno

Como o escritor um papel de destaque, a palavra se torna mediadora importante entre livro, vida e escritura. No entanto, o processo pode tanto aproximar quanto destruir a voz de Macabéa e esse confronto revela algo que tem gerado muita discussão hoje em dia: quem é o romancista brasileiro contemporâneo?

Antes, é preciso destacar algumas definições de Rodrigo sobre ele mesmo. Primeiro, ele se define como “um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto”. Da mesma forma, acredita que não tem classe social. “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”. Posteriormente, entende que não tem uma visão original, mas não deixa de perpetuar um preconceito da classe literária: “Aliás — descubro eu agora — também eu não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”.

Clarice já dava algumas pitadas do que Regina Dalcastagnè e o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília comprovariam com um estudo sobre o romancista brasileiro de 1965 a 2014. Em entrevista para a revista Cult de fev. de 2018, Dalcastagnè revelou que, apesar do aumento de mulheres escritoras e de ainda ter pouca representatividade negra, o perfil do romancista e de seus narradores e personagens se mantém o mesmo há muitos anos: são homens, brancos, de classe média e pertencentes ao eixo Rio-São Paulo.

A pesquisadora, que defende uma pluralidade de representações no mercado editorial, diz que esse cenário autorreferente cria publicações homogêneas e exclui aqueles que estão em outros cenários sociais. Segundo Regina, é possível ver nisso no uso do adjetivo “simples” para dizer que alguém é pobre e que isso se reflete na literatura “uma vez que pessoas pobres são retratadas como personagens simples quando na verdade poderiam ser extremamente complexas. Isso não quer dizer que não haja personagens interessantes em alguns desses livros. Mas a perspectiva geral das obras é de classe média, e fala muito sobre como essas pessoas são vistas ou pouco vistas, porque no Brasil existe esse muro social. Convive-se pouco com pessoas de outras classes, e mesmo quando se convive, não se enxerga quem elas são”.

Nesse sentido, é possível ver as dores de Rodrigo como uma espécie de personificação desse complexo do narrador brasileiro: por mais ternura que sintam por suas Macabéas, a maioria deles não conseguem transpor a gigantesca barreira que impede o contato dessas duas linguagens e o que resta é apenas o silêncio.

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.