Resenha: A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda

Marcas de um existencialismo doméstico

Arthur Marchetto
Estantário
5 min readDec 20, 2017

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Imagem da estátua de Xavier Medina, La Colometa, na Plaza del Diamante, em Barcelona. Foto: Lídia Carbonell

A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda (2003).
Planeta- 240p. R$44,90

Mercè Rodoreda é considerada a escritora mais influente em língua catalã. Formada no exílio republicano espanhol, sua obra é marcada pelo contexto pós-Guerra Civil Espanhola e já foi traduzida para mais de quarenta idiomas. A escritora, conhecida principalmente pelos seus romances, também escreveu contos, poesias e peças de teatro.

Com a vida marcada pelo contexto da Guerra Civil Espanhola, Mercè Rodoreda teve um casamento difícil com seu tio, 14 anos mais velho, depois partiu para o exílio, tornou-se amante de outro escritor catalão, Armand Obiols, e, quando descobriu que tinha outra amante, decepcionou-se. Rodoreda morreu em 1983 aos 74 anos, devido à um câncer no fígado, com mais de 20 obras publicadas.

Pouco conhecidas aqui no Brasil, muitas das obras de Rodoreda incorporam o contexto bélico da escritora, como A Praça do Diamante, livro que se passa no começo dos anos 1930, período de efervescência da Guerra Civil, e vai até os anos 1960. A narradora é Natàlia, uma jovem balconista, que conhece um rapaz impulsivo durante um baile na Praça do Diamante.

Ela e o jovem, chamado Quimet, se apaixonam e Natàlia, agora Colometa — que significa pombinha, em catalão -, decide largar seu noivo, Pere, para se casar com o novo pretendente. A partir daí, Colometa é colocada sob o sutil controle aprisionador de Quimet e passa por diversas mudanças, como a casa nova, a gravidez e a criação de um pombal.

“O Quimet combinou que a gente se encontraria às três e meia e só chegou às quatro e meia, mas eu não falei nada porque pensei que talvez eu é que tivesse entendido mal e estivesse enganada, e como ele não disse nem meia palavra de desculpas… Nem me atrevi a dizer que meus pés estavam doendo de ficar tanto tempo em pé” — p.19

No entanto, conforme o sufoco do esposo se afrouxa com a chegada da guerra, já que Quimet se voluntaria para as milícias paramilitares contra as forças franquistas, a pressão é substituída pela presença do conflito, que gera fome, solidão, escassez financeira e medo.

A história de Colometa apresenta a opressão tanto em nível micro quanto em macro: ela é aprisionada tanto pela condição feminina quanto pela Guerra. Tal embate é distante, pouco compreensível para a narradora, já que é mulher e está confinada em outra esfera, e também mostra os limites entre homens e mulheres dentro do contexto, como as diferentes possibilidades de matar que Quimet e Natàlia desenvolvem ao longo do livro.

No entanto, apesar dos temas pesados, o livro não trata do sofrimento e nem tem uma leitura carregada. Pelo contrário, ele é marcado pela fluidez e oralidade. Como diz a própria autora, A Praça do Diamante conta uma história de amor, mesmo que não tenha um grão de sentimentalismo.

Existencialismo doméstico

Mercè tem diversas marcas que definem estilo da sua escrita. Em A Praça do Diamante, Rodoreda procurou Kafka para escrever uma trama absurda, com pombos presentes o tempo todo, sufocando Natàlia do começo ao fim do livro. No entanto, o processo de escrita modificou suas intenções e a narrativa mostrou um papel diferente para os pássaros, mas manteve suas raízes existencialistas. A angustia e a confusão são elementos constantes na história de Colometa.

A simbologia poética é outro traço importante nos livros da escritora. Ela é vista, por exemplo, pela valorização de objetos e do cenário. O quadro das lagostas, a concha, o funil, a faca, os pássaros e o pombal refletem bastante o desenvolvimento simbólico e estruturam o que Natasha Wimmer chamou de existencialismo doméstico. São os objetos de casa que permeiam a vida de Natàlia.

“Tinha um quadro dependurado com bastante amarelo e vermelho, que mostrava um monte de lagostas com coroa dourada, rosto de homem e cabelos de mulher, e toda a grama em volta das lagostas, que saíam do poço, estava queimada, e o mar ao fundo e o céu por cima eram cor de sangue de boi, e as lagostas vestiam uma couraça de ferro e matavam a rabadas” — p.29

Além disso, as referências à Guerra são sempre indiretas e restritas ao ambiente familiar. Quimet está envolvido em atividades misteriosas, mas a percepção vem pela falta de gás de cozinha. Como disse Wimmer, “Toda a paixão que poderia ter surgido com a guerra é expressa na sua [de Colometa] batalha com o pombal que Quimet construiu no telhado”.

As protagonistas de Rodoreda estão imersas em detalhes miseráveis da vida doméstica, são tão famintas por um vislumbre de beleza quanto por uma refeição satisfatória. Colometa não foge ao modelo. Seus sentidos são afiados pela fome e estão quase sempre sobrecarregados com a intensidade da existência diária. Além disso, as mulheres também “são notáveis por sua falta de vontade quase patológica, mas também por sua sensibilidade aguda, uma consciência quase dolorosa da beleza”, afirma Natasha.

“Eu ouvia muito admirada porque via um outro Cintet e fiquei pensando que a guerra mudava os homens” — p.148

A Praça do Diamante também apresenta outros recursos da literatura, como uma narrativa que segue o fluxo de consciência, repleta de fragmentações temporais. É a junção deles que faz com que o livro seja tão marcante e o mais destacado de Mercè e faz com que o grito de Natàlia marque tanto. Por fim, vale ressaltar o que disse Wimmer: “É curioso que Rodoreda é tão estimada pelas feministas (ela é assunto frequente de pesquisas acadêmicas), quando seus romances giram em torno da abdicação do controle pelas mulheres e sua subsequente humilhação. Ainda assim, há alguma coisa completamente moderna no jeito que Rodoreda reconhece os acordos não sentimentais que se disfarçam de amor”.

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.