Resenha: O Oitavo Selo, de Heloísa Seixas

Uma quase-ficção sobre a vida de Ruy Castro

Arthur Marchetto
Estantário

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O Oitavo Selo, de Heloísa Seixas (2014).
Cosac Naify- 192p. R$39,90

Foi na França, em 1977, que o termo autoficção surgiu pela primeira vez no livro O Filho, de Serge Doubrovsky. O termo adiantou a cena que permearia o país na década de 1980: diversos livros onde o assunto era o próprio autor — mas que não poderiam ser classificados nem como diários, ou confissões, ou autobiografias¹.

Essas narrativas se tornaram numerosas naquela época e diversos críticos franceses as culparam pela “decadência da cultura francesa”. Hoje, com a retomada dessas histórias, a produção é associada ao narcisismo da época dos selfies. O norueguês Karl Ove Knausgård, da série Minha Luta, é um dos escritores de destaque na autoficção da atualidade e tem suscitado alguns debates. Entre eles, o mais conhecido é: quanto do que é escrito é verdade?

No entanto, a resposta é fácil: na autoficção, o que importa não é o grau de veracidade, mas sua verossimilhança. O que a narrativa busca é suscitar reflexões universais sobre a vida de acordo com a individualidade daquele personagem-autor. São como as crônicas dos antigos roda-pé dos jornais, onde cenas banais, como encontrar uma luva, levantava reflexões sobre a vida, a solidão e os amores.

No Brasil, a autoficção encontrou representatividade em diversos autores, como Ricardo Lísias, em Divórcio, Bernardo Kucinski, em K. — Relato de uma busca, Márcia Denser, em Tango Fantasma, e Tatiana Salem Levy, em A Chave da Casa. Heloísa Seixas figura nesta lista com O Oitavo Selo, uma autoficção que narra as situações de quase-morte que ela passa com Ruy Castro, seu esposo.

Em entrevista para O Globo, Heloísa afirma que “não adianta tentar estabelecer fronteiras”. Isso porque acredita que os limites entre ficção e realidade “estão cada vez mais incertos”, conforme dito no jornal Rascunho. “Há alguns anos venho gostando de brincar com os limites entre ficção e não-ficção”, comentou a escritora.

“Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Epígrafe de K. — Relato de uma busca, de Bernardo Kucisnki

É por isso que ela define o livro como “meio ficção, meio não-ficção”. Um quase romance. Ela afirma que “muitas cenas ali de fato aconteceram (…) e até parecem romanceadas, mas não são, outras são totalmente inventadas”. Ao comentar sobre a falta de relevância no debate memoria ou ficção?, Seixas diz que o importante é que o romance, baseado em histórias reais, conta histórias de confronto com a morte.

Assim, o quase romance, como descrito por Seixas, estabelece um diálogo com Carlos Heitor Cony e seu livro Quase Memória — quem homenageia em sua epígrafe. Em seu livro, Cony esmiúça a relação entre pai e filho, transitando entre a ficção e a memória. No caso de Seixas, não é uma correspondência que engatilha a narrativa, mas as situações de proximidade com a morte que Ruy Castro vive: cada ocasião é um selo, totalizando sete capítulos e um posfácio.

Semelhante ao filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo, Heloísa descreve os embates entre Ruy Castro e a Morte, mas com uma diferença: ao invés da partida de xadrez, vista no filme, Castro a confronta com as palavras. Em entrevista para O Globo, Heloísa afirmou que “durante muitas situações extremamente complicadas pelas quais passamos, eu chegava à conclusão que ele só não morria porque tinha uma história para contar, exatamente como a Sherazade”.

“Sherazade. Mais do que nunca, Sherazade. Ele estivera a ponto de morrer, sua mente fora atacada — a mente, o elemento mais crucial na composição daquele homem que às vezes parecia invencível — e ele pensava no livro.
O trabalho. A palavra. O prazer. Suas grandes armas contra a morte” — p.124

A narrativa, no entanto, apresenta a perspectiva de que as palavras também têm destaque na vida da escritora. Com mais de dez livros publicados, a presença da mortalidade, cada vez mais próxima, produziu uma narrativa que se adensou. Talvez por sua inevitabilidade, Gisele Eberspächer considera que a narrativa progressivamente adquiria uma tonalidade sombria de acordo com o avançar dos selos.

7 Selos e uma iminência

O livro percorre a passagem pelos sete selos até o epílogo, onde o oitavo é apenas sugerido no diálogo entre leitor e a conclusão do livro: seria a vida; a morte; a iminência da mortalidade…? Só a leitura estrutura uma resposta. Além disso, cada um dos capítulos traz consigo uma mudança textual que corresponde ao momento vivido: Sangue traz uma narrativa que acompanha as memórias de infância; Nariz é um capítulo acelerado, com idas e vindas temporais; Fígado trabalha com a dependência e o controle; Língua estreita a relação com a palavra e a Sherazade; Coração trata das relações entre Eros e Tânatos além de, assim como em Cérebro, simular os efeitos patológicos em trechos do capítulo.

Se quiser saber mais sobre a divisão dos capítulos e os estilos, é só conferir o vídeo da Bárbara Krauss, do canal B de Barbárie. Ela fez uma leitura conjunta do livro comigo e fala um pouco mais sobre isso na resenha dela, que você pode assistir abaixo:

Outro recurso do livro é a presença de pequenos depoimentos ao longo da história. Dando uma visão externa à da contada pelo livro, os dois personagens, Ruy Castro e a própria escritora, Heloísa Seixas, reforçavam o borrão da fronteira entre ficção e realidade, mas sua presença encurta conforme os capítulos avançam e Seixas passa a ter mais presença.

Além disso, Heloísa propõe algumas intertextualidades, como O Sétimo Selo, filme de Ingmar Bergman, O Encontro Marcado, conto de Edgar Allan Poe, As Formigas, conto de Lygia Fagundes Telles, e o Quase Memória, livro de Cony, comentado no acima. Os diálogo são explicados e nivelam o patamar entre escritora, obra e o público dentro do próprio texto, principalmente pela explicação das tramas e das inspirações.

“Logo ele, que, por ironia, quase fora morto um dia por uma máquina de escrever jogada de um prédio” — p.86

O ponto alto da narrativa é o momento em que Ruy Castro escreve a biografia de Carmem Miranda entre macas, poltronas e muito desconforto. A conclusão deste livro, que destacou o jornalista no mercado editorial, dá uma ideia geral de O Oitavo Selo. No capítulo Língua, Heloísa escreve: “No segundo entre a última sílaba e o clique do telefone, ela ouviu os soluços. Ele tinha desligado sem se despedir. A mulher entendeu. Eles dois sabiam o quanto tinha custado escrever aquele livro”.

Por isso, antes das consideração sobre a porcentagem de realidade e de ficção, o livro reflete sobre as relações de um casal, suas proximidades com a palavra e a eterna vigilância contra a morte.

¹ O termo substituiu outros, como autobiografia ficcional. Termo criado com Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, ele colocava As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e David Copperfield, de Charles Dickens, sob a mesma classificação. O problema era que a classificação tinha alguns buracos, como a união indistinta de narrativas fantásticas, a exemplo do livro de Swift, e realistas, como o livro de Dickens.

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.