Resenha: Tempo de migrar para o norte, de Tayeb Salih

Considerado como o romance árabe mais importante do século XX, livro discute as ambiguidades relacionadas à condição colonial

Arthur Marchetto
Estantário
9 min readJun 6, 2018

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Publicado em 1966, Tempo de Migrar para o Norte foi escrito por Tayeb Salih e é considerado pela academia de literatura sarracena de Damasco como o romance escrito em língua árabe mais importante do século XX. Salih retrata diversos elementos das culturas e identidades árabes e africanas em sua produção literária, como a vida no campo, as religiões e as amarras que mulheres sofrem nas sociedades conservadoras.

Em Tempo de Migrar para o Norte acompanhamos um sudanês, sem nome, que retorna de Londres para sua pequena aldeia, na beira do Nilo, depois de sete anos realizando um doutorado em literatura. Ao regressar, ele encontra uma nova figura na vila: o forasteiro Mustafa Said. Assim como os outros moradores da vila, não faz ideia do passado de Said e fica intrigado com a figura enigmática.

Em pouco tempo, Mustafa o elege como testemunha privilegiada de sua vida pregressa e conta sua história. Com uma inteligência impressionante, Said também nasceu no Sudão e foi convidado a estudar fora. Quando novo, destacou-se na escola e foi convidado para completar seus estudos no estrangeiro; em Cairo e na Inglaterra, respectivamente. Sua perspicácia assombrosa fez com ele se tornasse um intelectual de destaque no estrangeiro.

No entanto, Said alimentava uma raiva de colonizado contra sua metrópole. Como vingança, seduzia mulheres inglesas — que pouco depois se suicidavam; sua última vítima, Jean Morris, foi assassinada a facadas. Mustafa foi preso e, depois de cumprir sua pena, voltou ao Sudão. Enquanto retorna, reflete que sua trajetória de intelectual depravado não auxiliou em nada a condição dependente de seu país. Na tentativa de reparar sua “vida de mentira”, se instala naquela aldeia com o intuito de ser mais útil na luta.

Mesmo assim, algum tempo depois de contar toda sua história para o narrador, Said desaparece e deixa a responsabilidade de cuidar de sua esposa e filhos para o narrador. Ao que tudo indica, Mustafa suicidou-se.

COLONIALISMO

Essa aproximação entre a história de vida de Said e do narrador é o que instaura na obra as questões do colonialismo, da modernização e das tradições em sociedades arcaicas, conservadoras. Mesmo com um estilo sucinto, Salih trata dessas questões com maestria e permite que a ambiguidade, traço de grande destaque na obra, se desenvolva de maneira honesta, sem parecer forçada.

Talvez o próprio trajeto do escritor tenha servido como fonte de inspiração, já que teve um itinerário pessoal como o dos dois personagens o livro. Como nos conta Michel Sleiman, em um texto para a folha, Tayeb Salih nasceu em 1929, “numa aldeia fincada a Norte do rio Nilo” e estudou na capital Cartum e em Londres. Nos anos 1953, começou a viver na Inglaterra “onde, por doze anos, chefiou o Departamento de Árabe da BBC. Na esfera política, foi conselheiro da UNESCO e dirigiu o Ministério da Informação no Catar”. Morreu no mesmo país, em 2009.

Quando começou a escrever o livro, na década de 1960, Salih presenciava o momento em que os países deixavam sua condição colonial, mas passavam por vários questionamentos sobre seus próximos passos. Segundo uma entrevista que deu para Eleanor Wachtel em 2002, Tayeb escrevia a obra no momento em que acontecia “o conflito entre o mundo árabe e muçulmano e o Ocidente, em função da luta da Argélia para conquistar a independência da França. Naquele momento, [o Ocidente] era o grande mal para nós. E aí, ocorreu a revolução egípcia e a intervenção dos britânicos, franceses e israelenses. E então aconteceu, e ainda acontece, o conflito Palestina-Israel”¹. Tais questões moldaram os questionamentos e impediram uma crítica unilateral no romance.

Dessa forma, a Europa não é vista como perversa, mas não se torna um modelo para pensar o desenvolvimento do Sudão; as tradições da aldeia não se tornam exemplos a serem seguidos, mas não deixam de ser referência para os personagens. Como dito por Milton Hatoum, “Tempo de migrar para o norte explora os desencontros e as tensões de uma sociedade que vive entre o arcaico que resiste e o afã de modernizar — mas cuja proposta de modernização (similar ao que ocorre no Brasil) é algo para o usufruto de poucos. Não há rede de proteção nem sequer saídas mais ou menos redentoras, mas sim monolíticos e definitivos impasses”.

Tanto o narrador quanto Mustafa são educados, atraentes e viajaram para o exterior para estudar — Said, no momento de dominação britânica; o narrador, nos primeiros momentos de governo próprio; ambos retornam ao Sudão, onde se sentem perdidos do mesmo modo, mas com perspectivas diferentes.

Em primeiro lugar, vamos pensar em Mustafa Said. Ele é um produto do colonialismo e do aculturamento da África. Para se vingar, se apropria dessa cultura e vai para Londres com a intenção de esgotar, sexual e existencialmente, todas as mulheres inglesas. Em uma das situações, quando estava prestes a encontrar uma nova vítima, disse “a cidade se transformou numa mulher”. Investia no seu charme exótico, de estrangeiro, para conquista-las.

Foi essa postura que o fez proferir o discurso: “Até que os fracos herdem a terra, até que se desfaçam os exércitos, até que o cordeiro possa pastar tranquilo ao lado do lobo e até que o garoto possa jogar bola com o crocodilo no rio, até que chegue esse tempo de felicidade e amor, continuarei a me expressar de forma tortuosa. E quando, ofegante, eu chegar ao topo da montanha, onde fincarei meu estandarte, vou me refazer e aproveitar”. Ou, de maneira resumida: “Vou libertar a África com meu p…”.

A situação se mantém até que Jean Morris, a última mulher com quem se envolve, o transforma de caçador em caça e faz com que ele perceba que a verdadeira maneira de atingir o seu inimigo não é invadir e conquistar, mas retornar às colônias exploradas e retirar de lá “a raiz do mal”. É essa noção que faz com que ele mate Jean, se culpe no tribunal e renegue sua vida antiga. Por isso, tenta ser produtivo na aldeia e ironiza a formação em poesia do narrador:

“ ‘Aqui nós não precisamos de poesia. Se tivesse estudado agronomia, engenharia ou medicina, teria sido melhor’. / Veja como ele fala ‘nós’ e não me inclui nisso, apesar de saber que eu sou da aldeia e ele é o estranho, não eu”, nos conta o narrador do livro.

Said revela que o colonialismo não é só econômico, mas cultural. Por isso, ouviu frases como “Mustafa Said é um homem nobre, cuja mente foi capaz de assimilar a civilização ocidental, mas essa mesma lhe destroçou o coração”, ou “o senhor, Mr. Mustafa, apesar de seu sucesso acadêmico, é um imbecil. Há um buraco negro em sua formação espiritual”.

Ele é o extremo oposto do narrador — sai com as suas ideias e volta com intenções práticas. No entanto, sua postura não deixa de ser ambígua. Na Inglaterra, seus livros estavam todos escritos em árabe; no vilarejo, possuía uma parede repleta de livros em inglês; quando tinha renunciado sua vida antiga, e vivia de acordo com o que acreditava ser melhor, suicida-se.

Por outro lado, o narrador retorna de Londres com a sensação de que pertence àquele lugar mais do que qualquer outro. Sente-se em casa quando regressa ao Sudão: “Ouvi o murmúrio da rola e, da janela, olhei para a palmeira do nosso quintal e constatei que a vida continua boa. Contemplando o tronco forte, as raízes fincadas na terra e a copa de folhas verdes, senti-me tranquilo. Não tenho mais a sensação de ser uma pena ao vento. Sou como aquela palmeira, uma criatura que tem origem, raiz e objetivo”.

A própria tradição da aldeia, personalizada na figura do avô, causa uma sensação de tranquilidade, de pertencimento e de riquezas daquela região; é uma valorização da cultura local, mesmo que sejam economicamente dependentes da Europa. Por isso, “para o padrão do mundo industrializado europeu, somos pobres camponeses, mas, quando abraço meu avô, sinto-me rico, sinto-me uma nota no coração pulsante do universo. Ele não é como um carvalho alto e frondoso que cresce numa terra que recebeu da natureza a bênção da água e da fertilidade, mas, sim, como os cactos do deserto do Sudão, de barbas grossas e espinhos afiados que vencem a morte porque não pedem muito à vida”.

No entanto, é essa mesma cultura que gera uma crise dentro da aldeia devido à sua visão machista, que afirma que as mulheres sempre foram e sempre serão posse dos homens; que elas devem sempre obedecer às suas ordens. Quando uma das mulheres da vila recusa a seguir tais costumes, a comunidade é chocada por uma forte cena de violência: uma tentativa de estupro que culmina em assassinato e suicídio.

Além das questões internas, o narrador tem longas conversas com seu amigo Mahjub, líder local. Ambos tentam auxiliar o desenvolvimento da região, mas de maneiras distintas. Mahjub está mais envolvido nas partes práticas, como a instalação de poços; o narrador, por sua vez, entra na política e participa de congressos que tentam modernizar áreas subdesenvolvidas das ex-colônias. Lá presencia hipocrisias e descasos que o fazem se sentir impotente, como na seguinte cena:

‘Construíssem primeiro escolas’, disse Mahjub, ‘depois discutissem a unificação do ensino’ (…). Se estivéssemos numa hora melhor, eu lhe teria provocado risos e indignação com as histórias daquele congresso. Ele não acreditaria que os novos senhores da África têm a pele suave, mas as ocas de lobo; que anéis com pedras preciosas brilham em suas mãos; que seus topetes exalam perfume; que vestem roupas brancas, azuis pretas e verdes feitas da fina angorá e de seda cara que cobrem seus ombros feito peles de gatos siameses; que seus sapatos refletem a luz das lâmpadas e rangem quando pisam o mármore. Mahjub não acreditaria que discutiram por nove dias o futuro do ensino da África na Sala da Independência, erguida especialmente para esse propósito, e que custou mais de um milhão de guinéus. Um enorme edifício de pedra, cimento, mármore e cristal. Totalmente circular. Foi projetado em Londres (…). Como poderia dizer a Mahjub que um dos ministros cujo discurso foi muito aplaudido disse: ‘É preciso que não haja contradição entre o que o aluno aprende na escola e a realidade do povo. Quem aprende hoje quer se sentar a uma mesa confortável, embaixo de um ventilador, quer morar numa casa rodeada por um jardim e com ar-condicionado, quer andar num carro americano da largura da rua. Se não cortarmos esse mal pela raiz, estaremos contribuindo para a formação de uma classe burguesa que não tem nenhuma relação com a realidade de nossa vida e ela será mais danosa para o futuro da África do que o colonialismo em si’. Como poderia dizer a Mahjub que esse mesmo orador foge da África nos meses de verão para se refugiar em sua vila no lago de Locarno.

Tais impasses do livro desembocam num final bastante representativo: ouvimos um grito de socorro que não sabemos se será atendido.

ORALIDADE E PROSA

Para além das questões políticas, o livro traz questões estéticas que dialogam com a tradição da literatura árabe. Em primeiro lugar temos uma história dentro de uma história; um narrador que conta a história de Said, como Sherazade que nos conta As Mil e Uma Noites. Além disso, há “belas alusões à poesia clássica árabe, sobretudo ao misticismo sufi de Abu Nuwas, o poeta do êxtase, da embriaguez amorosa, do vinho como metáfora do enlevo e da perdição”, como afirmou Milton Hatoum.

Sleiman também pontua sobre a forma do livro, quando diz que Tempo de Migrar para o Norte “é a firmação bem-sucedida do romance em língua árabe como gênero literário que, uma vez aberto às correntes inovadoras do seu tempo, reinventa a milenar ode dos árabes na difícil e sofisticada arte de narrar pela prosa. Que este romance de Tayeb Salih revisite o melhor da poesia dos antigos e contemporâneos não deve estranhar aos leitores, que têm em mão uma obra considerada hoje, por consenso, como a mais tocante e representativa da África negra, árabe e muçulmana”.

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Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.