Resenha: Sob a Redoma, de Stephen King

Uma reflexão sobre o ódio

Arthur Marchetto
Estantário
5 min readFeb 6, 2017

--

Sinopse: (…) Em um dia como outro qualquer em Chester’s Mill, no Maine, a pequena cidade é subitamente isolada do resto do mundo por um campo de força invisível. Aviões explodem quando tentam atravessá-lo e pessoas trabalhando em cidades vizinhas são separadas de suas famílias. Ninguém consegue entender o que é esta barreira, de onde ela veio e quando — ou se — ela irá desaparecer. (…)

Sob a Redoma foi lançado, no Brasil, no dia primeiro de outubro de 2012 pela editora Objetiva / Suma de Letras e é uma das grandes obras de Stephen King — grande mesmo, com 960 páginas e quase 1 kg e 300 gramas. Além disso, o livro deu origem à uma série de televisão que estreou no canal estadunidense CBS em julho de 2013, com uma trama diferente da impressa. Apesar do livro original ter sido lançado em 2009, Stephen King trabalhava em seu manuscrito desde a década de 1970.

Chester’s Mill é uma pequena cidade do Maine, entre Derry e Castle Rock, e enfrenta seus pequenos conflitos: Um político corrupto e influente na comunidade que era investigado pela polícia local, um veterano de guerra que havia comprado briga com um grupo de garotos e, além disso, a imprensa local incomodava as figuras poderosas. O livro começa no momento em que essa cidade fica, subitamente, isolada por uma espécie de redoma invisível e resistente, impedindo quase todo contato entre os internos e o restante do mundo.

Ao impor a situação de isolamento, os conflitos e as personagens da pequena cidade interiorana se entregam aos seus piores instintos naturais como, por exemplo, as cenas de assassinato, estupro, brigas e a reflexões gananciosas. Essas são imagens recorrentes no livro. A narrativa, que traz tem o traço característico de King de refletir sobre a natureza humana pode trazer um questionamento abrangente sobre o ódio. Afinal, somos tão propícios ao mau?

Um dos debates do CPFL Cultura¹, com Leandro Karnal e Luiz Felipe Pondé, pode ajudar na nossa linha de raciocínio sobre nossa parte “maliciosa”. Durante suas exposições, Karnal e Pondé discutiram sobre o ódio na natureza humana e suas várias facetas. Na primeira palestra, Pondé comenta que o ser humano é um animal acuado e, com isso, o ódio se torna parte da essência humana. Apesar do efeito negativo da palavra, nós odiamos e ponto. Pondé destaca uma das repostas possíveis para a necessidade desse sentimento enquanto acuados no pensamento evolucionista: o ódio e amor foram necessários para a sobrevivência do ser humano no ambiente selvagem.

Seguindo sua linha de raciocínio, ele nos traz aos dias atuais e apresenta uma transformação na forma de expressar sentimento pela visão de um sociólogo francês, Alain Touraine. Segundo Touraine, o ódio hoje é representado através de conflitos institucionais. Ou seja, o é ódio mediado por entidades oficiais, como advogados, que lutam por suas causas e expressam o ódio do cliente. Na nossa sociedade, é melhor odiar institucionalmente do que se odiar física e materialmente — a punição sobre suas medidas parece ser um fator importante no momento de decidir como odiar alguém.

Na apresentação de Leandro Karnal, outro ponto importante para continuarmos nossa reflexão é abordado: o poder de união e a repressão do ódio. Para ele, nós somos acostumados a reprimir e esconder nosso ódio, em parte devido à educação conservadora cristã que prega a possibilidade de amar a todos e o ódio como um pecado capital — sabemos que a primeira afirmação é falsa e que é pouco provável que nunca tenhamos passados por situações de ódio na vida. Se somos educados e levados a reprimir essa sensação ao longo da vida, por que ainda a sentimos? Por que somos violentos?

Karnal cita Hannah Arendt, que, ao estudar os militares nazistas, descobriu, nos agentes, pessoas normais, com famílias e filhos. Eles não eram os seres terríveis que permeavam o imaginário das mentes que perguntavam “como eles podem ter se juntado ao nazismo de bom grado”? Hannah descobriu que o mal não é extraordinário, ou raro. É banal, comum. O ódio é um sentimento que todas as pessoas possuem, e convivem com ele ocasionalmente.

Além disso, o ódio é um sentimento que pode ser manejado por terceiros e apresenta a maior facilidade de união. A expressão ‘bode expiatório’ se torna um ótimo exemplo: toda a culpa por um problema é posta em um determinado indivíduo, ou grupo, que sofrerá as consequências. Se continuarmos o exemplo do nazismo, os judeus foram o bode expiatório pelo fracasso da Alemanha e sofreram as retaliações que essa posição ofereceu.

Outro ponto de destaque é a amplificação de nossos pequenos ódios devido ao esvaziamento da esperança útopica, a crença em um futuro melhor, que houve com o fim da Guerra Fria, quando o Capitalismo e o Comunismo falharam em mostrar que nenhum dos dois poderia criar o lugar ideal para que todos vivessem em harmonia. Os exemplos da amplificação dos nossos pequenos ódios estão por aí, como o ódio material, algo como uma inveja pelo outro ter algum objeto de valor que eu não tenha. O que parece conter o ódio são as forças institucionais.

O que acontece quando essas instituições perdem seu poder? Ao que parece, Stephen King nos remete ao ódio “original” — físico e material. Big Jim, o político citado, relembra regularmente que os atos por eles tomados sob a redoma não tem importância por serem impossibilitados de terem punições oficiais e institucionais já que não tem interferência externa — física e constitucional. Dessa forma, ele leva seu ódio e seus planos à última instância, estendendo seus sentimentos até as últimas consequências.

No livro, o pastor Jim usa a manipulação e o afloramento do ódio para unir e manipular a população a favor de seus planos. Ao longo da trama, é possível notar as artimanhas que buscam a fácil união pelo ódio e a presença de bodes expiatórios na antiga pacata cidade de Chester’s Mill.

Stephen King leva esse sentimento ao extremo até o fim do romance, quando as explicações da redoma surgem, parecendo até um pouco fora do escopo da trama ou passando com rapidez. Embora não me pareça com um de seus livros mais icônicos, como It — A Coisa ou Carrie, a Estranha, Stephen levanta o questionamento ao longo de todo o livro com facilidade. O ódio irrefreável de certos agentes leva a comunidade para situações cada vez mais catastróficas, perigosas e homicidas, mas não deixa de considerar que, às vezes, o ódio é a última solução possível e, se manejado com consciência, pode coexistir e servir para um bem maior.

Como destacado por Pondé, se assumimos que sentimos e é natural não podemos deixa-lo solto. É pelo motivo do ódio existir, e às vezes ser a única opção, que devemos controlá-lo e evitá-lo para continuarmos a conseguir viver em sociedade.

Ficha Técnica
Nome:
Sob a Redoma
Autor: Stephen Kung
Editora: Suma de Letras
Páginas: 960

¹ Aos interessados, aqui o link para a primeira das palestras: http://tinyurl.com/o4zgtdp

Obrigado por ler até aqui!

Se você gostou do texto, considere apoiar o financiamento coletivo (ou pode me dar um livro de presente). Mas saiba que só de compartilhar, você já auxilia na manutenção do conteúdo.

Além disso, não deixe de conferir a newsletter Ponto Nemo. Também tenho outras produções do Estantário e faço parte do podcast 30:MIN. Também estou no Twitter e no Instagram.

--

--

Arthur Marchetto
Estantário

Jornalista. Escreve, joga, lê, pesquisa e grava algumas coisas. Às vezes, lê uns tuítes.