Precisamos decolonizar a imaginação

Clube Escrita Livr.e
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4 min readDec 5, 2020

Faz eras que estou para postar sobre esse assunto que me toca profundamente e hoje finalmente chegou o dia em que eu juntei a faca e o queijo.

Não sei se você já reparou nisso ou não (eu, por exemplo, demorei bastante para reparar), mas o racismo não é o único traço da mentalidade colonial que nos acompanha até século XXI, embora seja, provavelmente, o mais danoso e doloroso. Nós, que vivemos nas ex-colônias, estamos particularmente sujeites a essa mentalidade.

Dá para vê-la, por exemplo, no comportamento de quem aplaude a valorização da cultura na Europa mas diz que funk não é música; de quem fecha a cara para um filme ou livro nacional; de quem acredita que a ciência só é boa quando vem dos Estados Unidos ou da Europa, talvez do Japão.

Nada disso acontece por acaso e, certamente, nada disso acontece porque existe algo de inerentemente inferior no que é produzido no Brasil ou na América Latina de modo geral, ou na Índia, ou na África.

E ainda assim, diversas vezes é para fora que olhamos para nos regular e nos inspirar, recusando o que temos por aqui, frequentemente sem sequer conhecer o que vem daqui de verdade, simplesmente comprando estereótipos e rótulos alheios.

Em 2016, quando esse processo começou para mim, eu reparei que 99% da minha estante era tradução ou um livro estrangeiro mesmo. O que não seria necessariamente um problema, não fosse o fato de que 99% desses livros vinham da mesma tradição anglo-saxônica.

Dos cerca de 200 países existentes no mundo, tudo que eu lia estava concentrado ali naquele eixo EUA-Inglaterra, de vez em nunca surgia alguma coisa canadense ou neozelandesa.

Quando foi que o nosso mundo tão grande e tão plural ficou tão pequeno e tão uniforme?

Bom, começou lá pelo século XVI e continua, de certa forma, até hoje.

Esse não é um post prescritivo, não trago aqui regras do que ou como você tem que trabalhar e criar suas histórias! Este texto é mais um alerta e um convite para que busquemos ativamente sair de nossas bolhas, ampliar nossa visão de mundo e descolonizar nossa imaginação.

Se você ainda não conhece a TED Talk “O perigo de uma única história” da nossa musa Chimamanda, sugiro que comece a pensar sobre o assunto assistindo à fala incrível dela. Tenho certeza que ao ver os estranhamentos que ela teve, você também vai perceber quanta coisa estranha fazemos por aqui e, muitas vezes, conosco mesmes.

O Livr.e desde sempre quis fazer sua parte (ainda que pequenina) de uma expansão necessária de nosso cânone literário, não sei se você sabe, mas faz uns 60 anos que o perfil de quem escreve no Brasil é, obviamente, macho, hetero, mais de 40 anos, classe média alta, das regiões sudestes. Bem como quis aumentar o acesso à escrita para aumentar as vozes e as visões de mundo que absorvemos do que lemos, afinal, literatura é liberdade.

E as perguntas que eu faço são (apenas) provocações ao pensamento e todas elas partem da mesma raiz:

Será que nossa imaginação é tão livre quanto pensamos? Ou será que ela já está delimitada por pilares tão antigos que parece que essa é a única forma? Aliás, por pilares tão habilmente construídos que parece que sempre foi assim e que eles não foram feitos por outros seres humanos como nós?

Acredite, o nome de uma personagem não diz pouco, a cor de sua pele não diz pouco, o local onde a história se passa não diz pouco.

Já comentei antes sobre o poder da narrativa e a responsabilidade que temos ao utilizá-lo e hoje venho falar novamente desse poder, ressaltando uma narrativa secular que nos prende e limita desde que Cabral chegou ao Brasil, desde que Colombo descobriu a América.

E acredito que tudo começa com a diversificação das produções culturais que consumimos. Se a gente só ler livros traduzidos do inglês, por exemplo, vai ser estranho ver, e pior ainda, escrever uma personagem que se chama Pedro ou Juliana ou Seu Zeca. Afinal, não estamos acostumades a isso e esta falta de costume é um grande perigo, porque conhecemos pouquíssimos lados da história.

Por fim, mas não menos importante, gostaria de reforçar que pensar a decolonização da nossa imaginação não significa que a gente nunca vai poder escrever um conto de natal em Nova York ou mistério na Inglaterra Vitoriana. Nada disso.

A idéia é, simplesmente, lembrar que nós temos escolhas e que o mundo é mais amplo, plural, polifônico e colorido do que normalmente costumamos ver nas nossas telas e páginas!

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