O Lixeiro de Bradbury — O retrato de um imaginário coletivo

Mestre da literatura de ficção científica, Ray Bradbury é capaz de, em pouco mais 4 páginas, sintetizar o sentimento de seu tempo.

bh pereira
Esteves e a Metafísica
7 min readFeb 12, 2018

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Existem alguns elementos na nossa cultura que, de tão disseminados em nosso cotidiano, acabam nos passando uma ideia de universalidade. São ideias e conceitos que nos parecem inerentes à sociedade, mas que com o devido distanciamento, se mostram específicos de um local e de uma época. A essa estrutura de pensamentos, que molda a forma coletiva de se ver a realidade, damos o nome de imaginário coletivo.

Mas o que é um imaginário coletivo?

Imaginário coletivo é um conceito usado em diversas ciências — como a História — para referenciar uma série de características em comum no modo de agir e pensar de uma população que compartilhe um mesmo período. A ideia de imaginário coletivo ficou caracterizada por uma abordagem interdisciplinar, já que une a análise histórica com a sociologia e a antropologia, sendo determinante para o estudo das ciências humanas na metade do século XX. E foi nesse período de ascensão do conceito de imaginário coletivo que a humanidade experimentava um dos mais radicais e abrangentes exemplos do que é um imaginário coletivo.

A Guerra Fria.

A Guerra Fria é um exemplo perfeito de imaginário coletivo. O período que começa com o fim da Segunda Guerra Mundial[1] traz ramificações imaginárias que ultrapassam as fronteiras temporais formais da queda do muro de Berlim estendendo-se, em vários aspectos, aos dias atuais. Os vários imaginários secundários que constituem o imaginário coletivo da Guerra Fria são essenciais para entendermos as rupturas e continuidades vividas pela humanidade no último século.

Além de trazer uma nova noção imagética para antigas noções humanas, como o maniqueísmo, revisitado em uma briga entre duas potências antagônicas (comunismo x capitalismo), o “novo” imaginário coletivo consolidou também algumas novas problemáticas sociais, que começaram a se desenvolver nas décadas anteriores e agora seriam assimilados aos saberes científico e filosófico. Dois dos exemplos mais marcantes desses elementos imaginários popularizados pelas décadas da Guerra Fria são a assombrosa aceleração dos avanços tecnológicos e o medo de uma possível auto destruição da humanidade através da tecnologia.

E aqui cabe um adendo sobre as formas de construção de um imaginário social:

Afinal, quem produz o imaginário coletivo?

Quem constrói essa imagem social que acaba por fundamentar a percepção coletiva de realidade?

Obviamente existem (e sempre existiram) certos grupos em certa posição de privilegio na produção de cultura. Sujeitos em posições privilegiadas acabam por difundir ideais coletivos dentro da produção cultural. No exemplo da Guerra Fria podemos citar as inúmeras propagandas políticas criadas em ambos os lados para incitar o ódio e a bipolaridade. No entanto, seria ingenuidade nossa supor que toda a representação cultural propositalmente construída vai ser entendida, consumida e reproduzida de maneira homogênea dentro de uma pluralidade subjetiva de consumidores.

Michel de Certeau[2] foi um dos pensadores do século passado que mais trabalhou a ideia de que toda a produção cultural tende a ser deformada e reestruturada pela massa anônima que a consome. Nesse sentido, podemos entender que práticas cotidianas de apropriação da produção imaginária tendem a modificar e ressignificar a intenção original daquele produto, de forma que o consumidor anônimo passa a ser tão fundamental quanto aquele em posição de fala privilegiada na construção da imagética coletiva da realidade vigente. Dois bons exemplos de imaginários coletivos criado como reação a uma construção primária são a contracultura e o imaginário coletivo do medo nuclear. Esses dois exemplos borbulharam dentro da cultura popular nas mais diversas artes, incluindo a música, o cinema e a literatura.

O imaginário do medo nuclear

A humanidade estremeceu durante as duas guerras mundiais ao se deparar com a possibilidade da humanidade ter a capacidade de se auto destruir através da tecnologia. Essa noção teve forte impacto na arte e na filosofia, tendo como principal reflexo a ascensão do existencialismo. São inúmeras as obras que buscaram expressar esse medo coletivo, um dos meus exemplos favoritos vem de um poema de Carlos Drummond de Andrade chamado Congresso Internacional do Medo.

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

Esse poema é icônico, tanto em seu desencantamento com o mundo, quanto na forma que o poeta usa para expressar essa democratização do medo, onde o sentimento de pavor é capaz de unir a todos.

O Lixeiro.

uma obra em especial que, na minha opinião, se destaca na capacidade de expressar o medo da desumanização (um imaginário constante que nos atormenta até os dias atuais) de maneira profunda e singular. O conto O Lixeiro de Ray Bradbury, escrito durante a década de 50 e com pouco mais de cinco páginas, que se desenvolve em meio a um diálogo entre um motorista de caminhão de lixo e sua esposa.

Na trama o lixeiro, que é apresentado como um animado trabalhador da era de ouro norte americana, aparece em casa extremamente abalado e ameaçando largar seu emprego. O motivo é o novo rádio instalado em todos os caminhões de lixo. Um rádio que, quando acionado, solicita que os caminhoneiros despejem o lixo aonde estiverem e passem a rodar pela cidade recolhendo os corpos.

A narrativa, focada na tensão de seu protagonista, não dá muitas informações a respeito do dispositivo e nem da catástrofe eminente. Pelo contrário, ela nos traz a ideia exagerada distorcida de um homem consumido pelo próprio pavor.

A história conta com a personagem da esposa do motorista como um contraponto racional e pragmático, nos fazendo lembrar — em meio aos horríveis devaneios do lixeiro — questões práticas, como o prover familiar e a responsabilidade de criar e alimentar seus filhos, ante a possibilidade do lixeiro abandonar seu emprego. E é quando sua esposa tenta convencê-lo de segurar um pouco mais sua função como motorista do caminhão de lixo, que o protagonista nos confidencia seu mais profundo medo em relação ao emprego após a instalação dos rádios: a ideia da banalidade. A ideia de que aquele horror se torne algo tão comum e trivial, que ele acabe se acostumando com aquela realidade terrível.

“Não sei. Tenho medo disso. Tenho medo de que, se pensar nisso, em meu caminhão e meu novo trabalho, vou me acostumar. E, ah, Deus, não parece nada certo que um homem, um ser humano, deva se acostumar com uma ideia como essa.” (p. 22)

Essa não é a primeira história a transmitir a ideia da naturalização do aberrante. Quase quarenta anos antes, Franz Kafka publica o livro A Metamorfose, onde um dos aspectos mais marcantes da ficção é o processo onde a família Samsa passa a se habituar com a ideia de Gregor ter se transformado em um inseto monstruoso.

No entanto, o que marca o conto do lixeiro é a aproximação daquele horror com seu contexto, já que no período em que foi publicado o conto uma catástrofe nuclear era uma ameaça constante que dormia e acordava com as pessoas, que no entanto precisavam acordar e trabalhar no dia seguinte para sustentar suas famílias que continuavam, dia após dia, vivendo aquele medo constante.

A forma com que o conto descreve as angústias do protagonista é visceral, e isso é visto em uma fala onde ele se pergunta como deveriam ser empilhados os corpos dentro do caminhão, se deveria misturar homens e mulheres, adultos e crianças, e quantos corpos caberiam dentro do caminhão. E como se esse pequeno monólogo não fosse suficientemente brutal, os pensamentos que se seguem na cabeça do lixeiro vão muito além, nos dando uma descrição visual de como seriam os corpos amontoados em meio aos restos lixo na caçamba do caminhão.

“E como era se você puxasse a lona e olhasse lá dentro. E por uns poucos segundos, você via as coisas brancas como macarrão, só que as coisas brancas estavam vivas e fervilhando, milhões delas. E quando as coisas brancas sentiam o sol quente sobre elas, encolhiam-se e desapareciam na alface e na carne moída podre e na borra de café e nas cabeças de peixe branco.” (p. 23)

O final da história é certeiro. O conto acaba com o barulho das crianças entrando na cozinha correndo felizes e despreocupados. Esse contraponto final, que corta abruptamente a tensão desenvolvida até então, serve para nos transmitir a sensação de alienação infantil e a ideia do protecionismo adulto que priva as crianças das angústias vividas pelo adulto moderno. E a personagem da esposa usa essa noção de protecionismo de maneira oportuna para pôr um fim nos devaneios do marido. O que fica explícito em sua fala, que encerra de vez a conversa e o conto.

“Sentem-se, meninos, sentem-se!” Levantou uma das mãos e a estendeu e direção a eles. “Vocês chegaram bem na hora.” (p. 24)

Ray Bradbury (1920–2012) foi um dos maiores contistas do século XX e um dos expoentes da chamada literatura de ficção científica. No entanto, sua literatura não se limitava ao sci-fi e suas obras flertam com os mais variados gêneros literários. Ficou conhecido por obras como Fahrenheit 451, uma das maiores distopias da literatura e Crônicas Marcianas, uma obra genial e bem humorada que usa da ficção científica para problematizar algumas das maiores questões da humanidade, como a dizimação colonial, o pertencimento nostálgico, o racismo e, é claro, o potencial humano de autodestruição.

O Lixeiro (The Garbage Collector) foi publicado em 1953 (mesmo ano em que publicaria Fahrenheit 451), seis anos após a criação do Relógio do Juízo Final e em pleno auge da paranoia nuclear. Aqui no Brasil apareceu na coletânea de contos A Cidade Inteira Dorme e outros contos, publicado pela Biblioteca Azul (um selo da editora Globo) e é da sua segunda edição, de 2013, que os trechos foram extraídos.

[1] Alguns historiadores são mais abrangentes e remetem o início da Guerra Fria à revolução russa de 1917.

[2] CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

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