Amor nos tempos de

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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2 min readMar 27, 2020

as fronteiras fecharam
você não pode vir
e eu não posso ir
mas nenhuma quantidade de leis
água
sabão e álcool
extermina
a saudade

três semanas
e contando
bolei planos
de cruzar ilegalmente
entre o português e o castelhano
posso fingir ser de lá e não daqui
conheço vários fronteiriços
especializados
vão dizer que não é questão de vida ou morte
e vou responder que não pode-se viver bem
sem as cidades pequenas para descansar das grandes

no primeiro ano, escrevi mil páginas sobre ela
a distância era a vilã da nossa história
o problema que pedia solução
enquanto te procurava nas prateleiras do mercado
te trazia mais perto com o perfume no travesseiro
o sabor do doce de leite
que eu costumava comer só da tua boca
quando a conexão falhava
me cortava mais um pedaço de torta

logo veio a familiaridade
anos e anos de nós dois
passei a dormir mais cedo e você passou a acordar mais tarde
roubei tuas manias e você roubou as minhas
partes de mim que não vejo mais no espelho, encontro perdidas em ti
inúmeros assuntos para discutir
no vagão restaurante do trem
e isso nos matou um pouquinho também

distância, proximidade
chegou a vez de sobreviver ao tumulto
da incerteza já somos melhores amigos
horas que não são nossas, hora
de se acostumar com um mundo
cansado da nossa presença

no mapa são 900 km
e 900 km não são nada quando vistos de cima
provavelmente estaríamos melhor
se tivéssemos deixado árvores no lugar das estradas
e nos abstido de todas as viagens
mas como abster-se se contigo
eu podia voar e derramar vinho no chão
sem nenhuma reclamação

eu aqui, você lá
escrevo uma mensagem contando da saudade com detalhes
tomo café sozinha
tomo café demais
olho pela janela
daqui não alcanço ver o céu
nem o dia em que isso termina

se termina

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