Ciclo de segunda-feira

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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3 min readOct 13, 2020

Querida,

Te escrevo porque nas últimas semanas me encontrei novamente com esse sentimento bem conhecido de deslocamento no espaço. Uma vida toda acontece internamente, mais pensada do que vivida (você sabe), mas quando estou aqui, no lugar que poderia chamar de meu, não consigo, me sinto desconfortável na própria pele. E como música ambiente, isso fica ressoando no meu ar.

Embora o externo esteja aparentemente intacto, no lugar que sempre esteve, algo não se encaixa, algo insiste em não se encaixar, e eu precisava te contar. Mas como me explico? É como se os meus limites fossem mais estreitos aqui, os contornos mais acentuados, me fazendo sentir bicho em armadilha, alimentando o pânico no peito. Lá fora há uma vastidão, mas o espaço aqui é pequeno. E sei que sentes isso também.

Por isso te escrevo. Para dizer que não há cura. Viajamos o mundo e quando volto, ainda sinto o mesmo, já tão familiar para nós. Não adianta: quero que nossas pernas nos levem para longe, para outro idioma, outros modos de falar com as mãos. As únicas vezes que me senti pertencente aconteceram fora desses limites, fora da casa que fala sobre a história da nossa família e do nosso país. E tento compreender, insisto, vez e outra, porque não queria me sentir assim, não é uma escolha minha, mas tudo isso foge à compreensão. Esse querer viver artisticamente tampouco é escolha. Querer fazer da própria vida arte é algo que aconteceu, que o tempo trouxe. Completei 27 anos, vinte e sete, mas em muito ainda me sinto verde, como você.

Te escrevo porque não tenho ninguém mais. Que me sinto muito bem sozinha não é novidade. Que sempre gostei de ser estrangeira, de usar as desculpas da má tradução para não ter que me explicar não é segredo. Eles devem ter visto logo de cara. Eu que demorei pra ver. Estava muito confortável me isolando de tudo e de todos, e agora não posso mais fazer isso. Aqui há família, amigos que querem saber de mim. Eu sei o que vão me dizer — há beleza para ser encontrada em qualquer lugar. Sim, mas essa inquietação eu não sinto em outro lugar.

Ser o que se é, ou fingir não ser e se tornar só fingimento? Sei que tenho caminhado pelos extremos, mas peço para teres paciência comigo: agora já está feito, está decidido, já não posso mais seguir. Meu futuro está em outros lençóis, outro hemisfério totalmente. Essa terra pede mais paciência do que eu tenho para dar, e outras qualidades, que nunca foram minhas. As expectativas de todos aqui me assustam. São elas, na maior parte do tempo, que me afastam. O que eu tenho para contribuir acaba sendo pouco para o que pedem. Criar uma vida deve ser maravilhoso, sentir-se parte de uma comunidade deve ser maravilhoso. Mas eu nunca vou me contentar com isso. com isso.

Sempre pensei que estivesse escrevendo sobre a vida, nunca percebendo que escrevia apenas sobre uma vida, e agora preciso corrigir o erro. Por hora, é o que tenho em mãos. Como muitas coisas, comecei e não sei como terminar esta carta. Parece que o ano está me forçando a pedir ajuda, de todas as formas.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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