Deveria ter dito

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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3 min readJan 20, 2020

Não foi a viagem que planejei, nem o descanso que quis. Não foi o que eu tinha em mente. Nada realmente é. O céu é sempre mais azul na foto dos outros. Não falarei de flores, arranha-céus e pistas de patinação no gelo. Não falarei de hotéis, shoppings e lojas de marca. Sequer pisei em qualquer um deles. Só caminhei pelas ruas, por horas, todos os dias, e comi os outros de colher no clima instável de Nova York.

Sei dizer que o português brasileiro é a terceira língua mais falada ali. Sei dizer que a rotina é pesada, o inverno é duro e a realidade é suja. Quem visita não vive, e eu vivi, mas não por escolha. Gostaria de ter visitado, adiado as decisões e andado de táxi, como férias devem ser — o escape, o freio nas preocupações, que são mesmo ocupações de período integral. Sempre com a cabeça na próxima semana ou no outro lado do mundo. Nunca aqui comigo.

Logo perdi o interesse nas luzes. Onde todos tiravam fotos, eu chorei. Dois buracos imensos no chão do tamanho daqueles que tenho no peito. Não sei como eles não estavam enxergando, como sorriam e empurravam os carrinhos de bebê por um cemitério. Há quantas vidas estou alimentando essa fenda, não sei dizer. A gente lê por aí que ou você ama, ou odeia. Eu nunca fui dos tons de cinza. Pintei um quadro com a minha mente e ele saiu assim, todo escuro. Nem toda beleza precisa brilhar.

Mas é isso que você ainda não sabe sobre mim: eu não escrevo quando estou feliz. Não aprendi a compartilhar felicidade. Aprendi a escondê-la, com vergonha. Sei que GRATIDÃO! é a palavra do momento, mas me poupe. Estou há tempos ajustando a câmera para não enxergar nada tão ácido ou doce — não sou feita de botões. Juro que houve flashes de alegria entre gente mal-humorada. As minhas fotos são mais polidas do que as minhas palavras, e talvez seja esta a diferença. Mas quando você passa muito tempo entre eles, logo o imaginário vai se despedindo, e eu já vinha no negativo há muito tempo. A conta não fechou. Foi estúpido confiar que iria.

Não foi o que eu pedi. Se tivesse todo o tempo do mundo para viver outras vidas, seria cantora, pianista, pintora, professora, física e geóloga. Apreciadora do céu e andante de ruas silenciosas. Principalmente, mais equilibrada. Mas e se estou tentando? Não é simples perceber que não sou mais quem eu era. Às vezes, ela canta, a vida entra sorrateiramente pela porta de trás e forma outra pessoa.

Ainda não me acostumei. Deveria ter me acostumado. Deveria estar feliz. Deveria terminar todos os versos que comecei, talvez juntá-los em um só. Todos querem dizer a mesma coisa. Há mais deverias do que meias na minha gaveta. Mantenho a aparência por fora com tudo bem organizado, porque é dentro que a confusão mora. Me cobro mais do que qualquer um jamais poderia. Não há juíza pior do que aquela que conhece os seus crimes tão bem quanto você. Ficar tanto tempo longe do seu lugar, o que isso faz com uma pessoa? Porque estes outros estão tomando um pedaço meu, e eu pensei que seria o contrário.

A soma de tudo, se você precisar um resumo, é que viver artisticamente é algo a se maravilhar mesmo. Com medo da vida que não para de crescer no estômago, finalmente decidi que meu futuro está além da estrada de tijolos amarelos.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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