Dores de crescimento

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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3 min readMar 28, 2020

Ela nem sabia que eu existia e ainda, entrou no meu apartamento, sentou ao meu lado e não saiu mais dali, tomando para si o trabalho de cutucar uma ferida que eu nem reconhecia. As pequenas violências que a gente guarda especialmente pra gente: pra mim, é a dor invisível do não ter feito, do que não foi, que é sempre mais elusiva do que a dor do que foi. Para quem deseja mais do que tudo criar, é a dor de não ter nada pra mostrar.

Não a conhecia há muito tempo, mas logo me apeguei. Ela não era rica, não era famosa. Mas ela não precisava fazer nada com o seu tempo além de criar arte, e era exatamente isso que eu ansiava.

Quando aceitei o convite dessa estranha, não sabia que estava aceitando pisar em ovos. Fui de olhos fechados, descobrindo tudo na cara e coragem. Mal sabia não perder um avião. Mal ganhava o suficiente para me atrever a querer mais. Tinha vergonha de falar outra língua e admitir erros. Dava importância a coisas sem importância e bebia café ruim com açúcar. Não tinha um grande propósito. Era pequena tentando andar em roupas maiores.

Quase dois anos depois, a sede que eu matava nos livros virou meu dia a dia. Se me contassem lá atrás, eu também não acreditaria. Só no ano passado, vivi em 13 lugares, entre metrópoles e vilarejos com menos de mil habitantes. Descobri o amor na Cordilheira dos Andes, o ódio na tórrida selva mexicana e o vazio nos subúrbios americanos.

Os contrastes que vivi serviram para desabrochar contrastes presentes em mim. Como ela, acabei aceitando as constantes mudanças como efeito colateral de ser. E tudo isso parece muito poético e convidativo, mas viver de peito aberto é, em primeiro lugar, doloroso. Envolve energia, tempo e consciência. O nosso primeiro impulso é negar tudo que se recebe, e continuar fazendo tudo como fazia antes. Mas logo isso se torna impossível, e nós, animais da natureza que somos, vamos nos adaptando. Trocamos as receitas, os sapatos, utilizamos o que há.

Quando você se abre para a vida desse jeito, se abre para o que é bom, mas também para o que é inerentemente ruim — e isso ela não lembrou de me avisar. A vida vem então inteira, não há como selecionar. Com a criatividade vêm medos, com a partilha vêm inseguranças, com a felicidade vêm traumas, com o novo ressurge o antigo, com novas pessoas, outras se afastam. As perdas causam luto, nostalgia, saudade. E tudo isso dói. São dores naturais ao processo de transformação, e elas são necessárias - nos ensinam o que importa e o que tanto faz. Mas a mente questiona o tempo todo: tá valendo a pena?

Às vezes eu não sei dizer. Descamar todos os dias não é delicado. Tenho saudade, sobretudo, de ser completa; essa pessoa com múltiplas arestas, com felicidades e angústias incoerentes, com sonhos e necessidades diferentes. Porque agora parece que não há lugar na Terra em que eu possa ser assim.

Estive sentada aqui o dia todo, esperando. Estive sentada aqui a semana toda e essa montanha-russa não para até chegar ao fim. Sei disso como sei que o céu é azul: de tanto terminar no chão e olhar pra cima.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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