Falei de você
Não sei se deu pra perceber, mas voltei pra terapia. Estive abrindo minha mala de questões não resolvidas e analisando lembrança por lembrança, semana após semana. Meu peito fica apertado durante a sessão, e depois dela também. Despejar tanto de mim em uma tacada só tem um jeito único de me tirar o fôlego. É delicado me contar como se eu fosse uma história. Não sou coerente, não sigo enredo, não sei como será o final do livro. Sei que memórias são subjetivas e a gente muda de ideia. E não posso evitar me perguntar o que os outros personagens das minhas páginas diriam. Me sinto culpada se mostro alguém em má luz. Mas aí lembro que esse diálogo nunca verá o sol. Estou cantando só para os meus ouvidos.
Difícil é se colocar em primeiro lugar sem culpa. Nem na minha própria terapia eu deixo de me preocupar com vocês, vê? Todo mundo é cheio de luz e escuridão, mas eu estou sempre inventando novos tons pra minha própria versão da pintura. Quero tanto soar como poesia, mas estou mais pra um rádio repetitivo. Chega a hora, aperto o play e não paro até chegar ao final. Quando termino, escrevo com lágrimas nos olhos pra tirar o peso da cabeça. O processo não é nada parecido com poesia. Aqui você só vê os resultados, os estilhaços da explosão maior. Dá meia-noite e me torno abóbora de novo, andando em duas pernas como se nada tivesse acontecido. Mas tudo aconteceu. Falei de você, escutei mais de mim. Com que palavras me contar hoje se já não sou a mesma de ontem? O que vão pensar quando eu decidir mostrar o outro lado da beleza?
Ele me avisou que seria doloroso. Não tinha percebido até então. Mas se abrir na mesa assim, tão escancaradamente, com todas as suas feridas, todo o seu passado, só isso já te muda por dentro. Tudo que a gente joga pra debaixo do tapete volta sem aviso, nós somos alvos fáceis. Entendo por que tem gente que foge. Só os mais corajosos poderiam se deixar levar a um consultório estranho às cinco da tarde. Sair na rua com cara de choro — disso eu entendo bem.
Duas boas notícias nasceram daí. A primeira é que tenho dedo verde para escolher a pessoa que vai me ouvir. A segunda é que não senti medo nem resistência. Estive precisando tanto desse momento que não sinto vergonha de me desnudar. Não minto, me duvido, me contradigo. Em tempos que vivemos pela aparência, tem sido interessante me encontrar nessa situação. É como mostrar uma casa em construção, com todo o interior exposto, sem maquiagem e sem decoração, e esperar que os compradores a aprovem.
Com sorte, você me aprovará mesmo assim. Com mais sorte, exatamente por isso.