Folclore particular

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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4 min readAug 15, 2020

A primeira vez que admirei a minha mãe, eu tinha 16 anos. Estávamos brigando a plenos pulmões no sótão de casa. Eu queria que ela colocasse fim ao casamento, mas ela pretendia ficar casada até um dos dois morrer (a esperança é de que primeiro fosse ele). Entre lágrimas e soluços, anunciei que ela não era uma boa mãe; o trabalho de uma vida resumido, assim, em seis palavras e um número negativo.

Mas você precisa entender que nós nunca fomos o tipo de família que se intimida no confronto. Essa não era uma amostra da vida, esta era a nossa vida, discutindo dia sim, dia não, gritando de um andar a outro ao som da madeira se desfazendo nas dobradiças. Então ela sabia exatamente como responder. O peito irrompeu que não me queria, que planejava voltar à faculdade quando soube da gravidez. Tinha toda intenção de machucar. Foi justamente com ela que aprendi a usar as palavras como arma. A linguagem pode ser letal para quem interpreta. Penso nela, em nós, (em tudo), enquanto escrevo isso.

Na época, minha concepção de uma “boa mãe” era bastante rígida e antiquada. Eu queria que ela fosse uma daquelas mães que fica feliz quando as filhas ficam feliz. Que se interessa pelo meu dia, pelos meus deveres, pelas minhas amigas. Que percebe quando estou triste e faz brigadeiro só porque sim. Mas não havia nem mesmo interesse fingido, e a sua dose de preocupação, quando demonstrada, não saciava.

Não sei se ela se arrependeu do que disse alguns dias depois, como eu. Mas, em todo caso, já era tarde demais, aquilo já estava no ar. A informação guardada por uma vida já havia encontrado nova morada em mim. Um motivo fresco para amargar ainda mais meu café da manhã.

Dias depois, lembro que o arrependimento deu lugar a um estranho orgulho. Havia testemunhado um flash do que a minha mãe era, também do que foi e do que queria, dos planos que ela havia traçado e que foram substituídos. Por trás do olhar azul de mãe, havia uma mulher com desejos e rancores, com passado e futuro para além do meu umbigo, daquela casa, daquele núcleo, e eu havia provocado que ela ressurgisse, que vivesse, se manifestasse em gritos e mãos. Uma coleção de sonhos não vividos que ainda se mantinha em pé — e um péssimo exemplo para as filhas, eu tinha acrescentado verbalmente. Crescer vendo os pais infelizes não fazia parte das infâncias que eu absorvia dos filmes.

Hoje, enquanto escrevo, tenho a idade que ela tinha quando me teve. Só agora assimilo o que ela quis dizer, por que sempre foi oposta à ideia de terminar o casamento. Percebo melhor o peso de quatro filhas pequenas e como os livros, o cinema, as amizades, as festas, a paz, o sono, tudo fica sempre para o dia seguinte. É preciso uma aldeia inteira.

Veja bem, nunca foi sobre querer continuar casada ou não. Essa nem era uma opção. Aos sete anos, seus pais, meus avós, se separaram e a vida que ela conhecia foi lançada pelos ares junto às camisas. Aterrissaram no asfalto ao lado do fusca novinho. Ela terminou internada no hospital, e o irmão mais novo nunca mais voltou a falar com a mãe. Como ela conhecia de perto as implicações de um divórcio, a decisão de seguir no próprio casamento já havia sido feita muito antes de colocar a aliança no dedo, muito antes de inteirar-se do nome do meu pai.

Nós não pensamos o suficiente no que significa crescer na presença de pais que se odeiam. É estranho medir o impacto de uma frase ou um ato numa mente em construção.

Não guardo muitas memórias afetivas da infância ou da adolescência. Sei que eu era feliz pelas fotos, pelo modo como o sorriso tocava os olhos, mas não lembro de muita coisa. Hoje faz frio, é agosto, e com o risco de evidenciar a deficiência de serotonina no cérebro, acredito que nossos pais nos moldam muito além do que o consciente entende. E muito mais do que qualquer um de nós gostaria. Nomeando nossos próprios traumas, sem querer esbarramos nos dos outros. Talvez toda doença tenha uma função. Eu amo meus pais mais agora do que em qualquer outro tempo. Não adianta esconder os fios soltos na parte de trás e querer mostrar só a figura nítida em tons pastéis. De qualquer forma, um bordado nunca termina sendo perfeito.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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