Lugar nenhum

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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3 min readFeb 11, 2020

Não consigo me imaginar sendo feliz lá, eu disse. apenas um advérbio de lugar para qualquer outra pessoa, mas por mim excessivamente imaginado como substantivo composto por +598 planícies de grama, vacas e martírio.

Eu não precisava dizer, porque você conhece bem demais todos os meus peros. E, mesmo assim, a nossa relação não é a mesma porque não somos mais quem fomos. E já tem tempo. Relacionamentos são tão mutáveis como nós, bingo. Deveria ser óbvio, eu sei, e me envergonho de admitir que eu não tinha isso no radar. Gostava demais de como era para imaginar que poderia vir a ser outra coisa.

Mas eu absorvo o mundo como uma esponja, e te absorvi também. Tirei toda tua individualidade e coloquei pedaços meus para tapar os buracos. Você me deixou contando os remédios e esqueceu a roupa no varal. E quando é gradual, você não vê que está acontecendo no momento em que está acontecendo. Agora culpo a estrada por ser esburacada e sinto um tipo diferente de dor. Não é a mesma que nos mudou, porque nesta aqui eu tenho culpa. Eu a criei sem saber, mas de repente a vejo nitidamente. Parece ser um roteiro recorrente pra mim, esse de descobrir as coisas de um dia pro outro e depois não conseguir mudar de assunto.

Então brigamos todas as noites e quando chega a manhã, nos abraçamos porque estou exausta. Passamos o dia trocando beijos e esperando que a noite não chegue. Mas ela chega, como tudo que adiamos, e no escuro já não é possível mentir. Não quero desistir, mas também não consigo continuar. O desespero de conhecer a situação e não poder ignorá-la — ele só é tão grande porque nunca pensei que estaríamos aqui. Há um remorso incrível por estar aqui. E se chegamos ao fim, só restam realmente duas opções: deixar morrer ou nascer de novo. É no vazio que mora o voo.

Volto à questão a cada dois minutos para rever os fatos, recalcular os sentimentos e reavaliar tudo de barriga cheia. Pastel de nata, brigadeiro e pão de queijo. A única certeza é que há amor. Há tanto amor que ficamos às vezes constrangidos. Não conheço nenhum outro casal que compartilha tanto. Mas qualquer coisa em excesso faz mal, até o que é bom.

A outra certeza é que só posso ser inteira contigo. Para as outras pessoas, seleciono as minhas melhores máscaras, as minhas melhores falas, e escolho os adjetivos que estampam meu rosto na internet. Já estar contigo é estar comigo e eu não me preocupo em vestir nada. E mesmo assim, sinto que estou dando o pior de mim a quem merece somente o melhor. E sei que não é justo. Eu não te amo mais, mas eu não te amo menos.

Não consigo me imaginar sendo feliz lá, eu disse. Mas a bem verdade é que eu não consigo me imaginar sendo feliz em lugar nenhum.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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