Outra vida

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
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3 min readApr 3, 2020

Voltei muito maior do que quando parti, de modo que tudo parece pequeno aos meus olhos agora. Os cômodos, as ruas, as perguntas. Me sinto gigante onde uma vez me encaixei bem. Fui com pouco, mas voltei transbordando de bagagem, e tudo em excesso passou a fazer mal. Esta é a hora de descarregar, de despejar tudo na página. Mas há tanto por costurar e não sei de onde começar.

Evitei os cadernos nas últimas semanas. Estou aprendendo a tomar um tempo para descansar os pensamentos, deixar os sentimentos de molho até eles amolecerem o suficiente. Ingredientes errados nunca fazem nada bom. Não estou mais tentando apressar os processos, e só isso já é uma evolução.

Ainda não me sinto preparada para pensar no futuro. Traçar planos seria até piada, porque eles sempre são desfeitos. A vida é engraçada assim. Quando você começa a entender alguma coisa e planejar de acordo com o que você sabe, os caminhos mudam, o vento sopra em outra direção, e você se perde de novo. Hoje tenho um sonho nas minhas mãos e não sei o que fazer com ele. Uma ironia — quando o tempo finalmente chega, a grandiosidade que imaginamos nos paralisa no lugar.

A maior parte do que tenho pra dizer não é gentil. Está em mim ser um pouco brusca na honestidade, mas não é de propósito. Eu mesma temo me ouvir às vezes. Temo o resultado dos dedos soltos. A partir de agora, não será um pedacinho de mim, simplesmente. Não estarei mais me contando em 3 minutos. Farei um esforço de percorrer novamente o caminho inteiro, com todas as verdades, mentiras, dúvidas, desejos, erros, dores e alegrias. Revisitar tudo é inevitável, e partilhar faz parte da cura.

Mas e a falta? Parece que estou em uma realidade paralela. Tudo que eu fazia antes com os meus dias ficou suspenso. Antes mesmo da distância social, antes mesmo do roteiro distópico destes dias. A incerteza do futuro, os planos feitos pó e a reclusão foram constantes nos meus últimos 2 anos. Então agora você entende. Sinto que não tenho nada. E não ter nada é não saber quem sou, o que estou fazendo aqui. Mas aí, do fundo, me ocorre que tenho a escrita. Foi só o que sobrou — uma ideia.

Alguns dias duvido. Não vejo sentido em contar essa história. Em outros, lembro o poder que as histórias têm. Escrever é costurar os buracos que se abrem no decorrer do tempo. Cada palavra que termina na folha é um ponto unindo a minha pele e marcando um momento. Ninguém domina o tempo melhor do que a escrita. Então seria mais por mim do que para qualquer outra pessoa. Quando se trata de subir uma montanha, não há muita lógica envolvida; você faz para ver o que isso faz com você. E se eu não tenho nada, também não tenho nada a perder.

Não preciso de cartas ciganas para saber que se não estivesse aqui agora, com 26, estaria com 30, e 40, e 50… Algumas histórias precisam ser contadas e nós somos só a ferramenta. Estou exatamente onde deveria estar para começar. No centro da família, de onde vim, onde me fiz. Talvez não pudesse ser diferente. Talvez todos os caminhos inevitavelmente me trouxeram até aqui.

Depois de anos em mar aberto, terra firme é preciso.

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Dayanne Dockhorn
Estrangeira

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