O que me levou a viver na estrada

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
Published in
8 min readAug 15, 2019

Martín e eu moramos juntos em Pelotas — uma cidade mediana do sul do Rio Grande do Sul — por quase três anos. Nossa história, porém, começou antes, com um namoro a longa distância.

Ele, uruguaio do interior vivendo em Montevidéu. Eu, porto-alegrense quase terminando a faculdade de Antropologia e Arqueologia em Pelotas. Quando entreguei o TCC, em 2015, nos mudamos juntos e começamos o que seria um novo capítulo para os dois.

Durante os próximos anos, foi a convivência com ele, tão diferente de mim, que me permitiu vivenciar outro modo de viver. É impossível falar sobre mim sem falar sobre ele, já que foi a nossa história juntos o que me trouxe até aqui. Por isso, a minha escrita sempre transita entre o "eu" e o "nós". Às vezes acredito que não é justo usar o "eu" se fomos, na verdade, nós dois que trilhamos esse caminho.

Ao longo do tempo em que passamos em Pelotas, conhecemos bem cada cantinho da cidade e construímos um lar em um apartamento pequeno. Ao nosso redor, tudo era familiar. Ali nos conhecemos, ali saímos pela primeira vez, ali nos encontramos em madrugadas frias, ali vivem nossos amigos...

Nas padarias, nos mercados, nas cafeterias — todos já nos conheciam.

Martín trabalhava desde casa há muitos anos, e foi ele que me mostrou que eu poderia fazer o mesmo. No meu caso, depois de terminar a faculdade com um diploma tão inusual, entrar no mercado de trabalho pediu um pouco de criatividade da minha parte. Explorei minhas opções no campo da escrita e, em 2017, felizmente nós dois já ocupávamos posições remotas que nos permitiam viver bem e ter tempo de sobra para desenvolver projetos próprios (não sem esforço e muitos erros antes, vale ressaltar).

Nossas prioridades possibilitavam guardar grande parte do que recebíamos, e em um determinado ponto poderíamos facilmente ter comprado um carro, um apartamento, ou até mesmo planejado o aumento da família. Seriam as coisas "sensatas" a fazer, o que era esperado de nós tanto pelas nossas famílias como pela sociedade.

No entanto, isso estava muito longe de ser o que queríamos.

A vida já delineada à nossa frente não convencia nem satisfazia.

Além disso, não era meu desejo ficar vivendo eternamente no mesmo lugar — literal e figurativamente — só porque ali eu vivia confortavelmente.

Sempre tive uma ânsia no estômago para conhecer culturas diferentes. A Antropologia apenas intensificou esse sentimento durante quatro anos de leituras e aprendizados sobre pessoas e seus mundos. Ler etnografias era sempre uma experiência mágica — pensar que uma pesquisadora se transporta a cenários e idiomas diferentes, gestos estranhos, se imerge em outras pessoas e desconstrói tudo que ela pensava que sabia sobre eles e sobre si.

Era isso que eu queria fazer, e não me arrependo nem por um minuto de ter cursado Antropologia. Embora não pague meus boletos, ela me proporcionou todas as ferramentas que eu precisava para seguir os meus anseios. E isso acabou sendo muito mais importante e precioso para mim.

Mas depois de sete anos vivendo em Pelotas, havia poucos mundos para explorar ali. Aos poucos, passei a sentir a necessidade de mudar de horizonte para continuar crescendo antes de pensar em criar raízes em algum lugar. Queria experimentar viver mais livremente, de forma mais simples, diminuindo a bagagem de coisas e aumentando a de experiência, desatando todas as correntes que inconscientemente nos prendem no mesmo lugar.

A ideia de vender tudo e viver como nômades surgiu timidamente no final de 2017, logo após voltarmos de uma viagem de um mês. Esta foi a minha primeira viagem internacional, e o maior objetivo que me motivou a economizar e repensar minhas prioridades (eu queria mais roupas, ou talvez um carro, para usar no mesmo lugar, ou eu queria chegar e viver em novos lugares?)

Essa viagem também me mostrou que todos os meus medos de conhecer o novo eram infundados. Eu realmente podia me comunicar em novos idiomas, provar novos sabores e descobrir um mundo além daquilo que sempre conheci no sul do Brasil. Mas só soube que podia quando fiz, e não antes.

Antes, o medo quase me paralisou. Fiquei meses desperdiçando lágrimas ao pensar em planejar algo tão ousado, pensando que eu não poderia, que eu não tinha direito, que aquilo era para gente rica, ou gente aventureira, nada a ver comigo.

Quanta bobagem.

Por sorte, eu tinha ao meu lado um amigo e companheiro que abria os meus olhos e espantava as dúvidas.

E assim passamos um mês passeando por algumas das maiores e mais vibrantes cidades do mundo.

Depois de dias mágicos onde tudo era recheado de possibilidades, voltar para Pelotas significava voltar para a mesmice, e eu não cabia na mesmice. Logo, ficar não era mais uma opção.

Começamos, então, a pensar em mudar de cidade. Só que se mudássemos de cidade, estaríamos apenas mudando de casa e guardando as mesmas vontades. Descartamos a ideia rapidamente.

Em uma segunda análise, a viagem de um mês também nos fez entender que estávamos em uma posição privilegiada: não estávamos presos pelos horários e limites geográficos que prendem a maioria das pessoas. Por causa do modo que trabalhamos e das nossas prioridades, podíamos viajar por um mês inteiro, quando quiséssemos. E outra questão importante, que sem dúvidas ficou ao nosso favor: nossas famílias não necessitavam de apoio financeiro ou cuidados especiais.

Vendo deste modo, e ambos com posições remotas bem estabelecidas, não tínhamos motivo nenhum para continuar no mesmo lugar. E não ter motivo para ficar acabou sendo um grande motivo para partir.

Por fim, dia após dia, a ideia começou a tomar forma, e conhecer histórias de pessoas que faziam o mesmo foi essencial para nos incentivar a tomar o primeiro passo (este é um dos grandes motivos pelos quais eu compartilho a nossa própria história).

Sem endereço, sem casa para onde voltar, sem coisas demais, apenas nós e duas malas. Era o certo a fazer. Em outras palavras, não havia por que não fazê-lo. Tempo, energia, disponibilidade: tudo estava a nosso favor.

Em questão de meses, mudei meu discurso de “Mas eu nunca ficaria sem casa! Amo ter meu cantinho e minhas coisas” para

“Qual o sentido de ficar parada aqui, se eu poderia estar conhecendo tantos outros lugares?”

Minha mentalidade foi se transformando quando fui acessando fundo em mim o que era realmente importante, e o que eu poderia facilmente deixar para trás.

Pensava que desapegar do material seria a parte mais difícil, mas foi uma das coisas mais fáceis que fiz. Nós damos importância demais às coisas e eu queria justamente provar para mim mesma que eu não preciso delas. Coisas são só coisas, afinal. E o objetivo é viver a sua vida, não acumular coisas.

Sem a dor de cabeça de bancar um apartamento fixo, poderíamos usar esse dinheiro para ir de lugar a lugar e ficar quanto tempo desejássemos — ou pelo menos até os vistos expirarem.

A ideia de viajar pelo mundo por anos pode parecer totalmente clichê e ultra romântica. E para quem a vê apenas como um item para ser riscado da sua lista de coisas a fazer, ela de fato é. Mas essa ideia já não era romântica quando começamos a encarar essa mudança como o próximo passo natural para nós, enquanto pessoas e enquanto casal.

Para nós, viajar não significa apenas tirar férias ou esbanjar. Quando partimos, esta era uma oportunidade de estudar o mundo em primeira mão, vivenciá-lo de forma intensa e sem compromisso.

Hoje, enquanto escrevo isso, viajar se tornou parte da nossa identidade. Viver em movimento nos permitiu ser quem somos.

E quem somos?

Somos como você, como todos os outros — seres plurais, que mudam de ideia, que erram e aprendem, que se transformam e almejam o melhor.

Viver em um lugar só é ótimo também, eu sei. Há família e amigos próximos, confortos e sabores conhecidos. Há um sentimento de pertencimento muito maior e gente que fala com o mesmo sotaque que o seu. Tudo bem se você prefere isso. Mas eu não.

Entendo que os nossos pensamentos, e até mesmo a nossa vida, são entorpecidos pelo familiar. É comum viver por hábito, seguindo o mesmo dia já programado há tanto tempo atrás e sabendo exatamente onde você estará em cinco anos. Por outro lado, sair da “normalidade” é um banho de água fria que te desperta e te força a testar algo novo, ousar fazer diferente.

Hoje, quando eu me acostumo a determinadas paisagens, situações e idiomas, já é hora de ir embora. Nunca entro no piloto automático, não consigo chegar a esse ponto. Pelo contrário, estou constantemente aprendendo, revendo e repensando, e isso me estimula a manter a mente aberta. Experimentar constantemente contrastes entre o ali e o aqui permite perceber e aceitar que há maneiras totalmente diferentes — e mesmo assim válidas — de enxergar, interpretar e viver no mundo.

De certo modo, nós dois já estávamos fazendo isso dentro da nossa própria convivência, dado que vivíamos entre costumes uruguaios e brasileiros e uma língua totalmente misturada.

Mas também sei que não é suficiente simplesmente colocar alguns quilômetros entre você e a sua casa. É preciso estar atento às diferenças, por mais sutis que elas pareçam. Todos os detalhes que nos parecem primeiramente estranhos — os sapatos de plataforma altíssimos no Uruguai, a limpeza impecável do metrô lotado de Londres, o caos do trânsito de Atenas — por menores que sejam, nos permitem lembrar que conhecemos uma parte ínfima do mundo, e que não sabemos quase nada sobre o restante. Mesmo tendo fácil acesso a essas informações na ponta dos dedos, experimentar com os seus próprios olhos é outra história.

Escolhemos viver viajando, e hoje vejo que o termo que melhor explica o que fazemos é viver em movimento. É o constante movimento que nos impulsiona.

Para onde? Aonde quer que o vento sopre.

Martín e eu no Parque Nacional Huascarán, no Peru.

Originalmente publicado em 2018 e editado em agosto de 2019 para dar início à publicação Estrangeira.

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Dayanne Dockhorn
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