Volte ao início

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
Published in
4 min readFeb 26, 2020

Faz mais de uma semana e agora desconheço se meu rosto sabe formar um sorriso verdadeiro.

Nesse dia, que eu não lembro o número, roubaram tudo que eu tinha nesse mundo. No intervalo de duas horas, arrombaram a porta do carro, no estacionamento, e levaram tudo de material que eu carrego desde 2018. Muito humilde, eu, tinha reduzido meus pertences a uma mala, uma mochila e uma bolsa. Não deixei coisas pra trás na casa da minha família, não aluguei um espaço de depósito. Eu tinha isso, e era isso.

E então eu não tinha nada. Abri a porta e me deparei com o vazio. Se eu podia carregar, claro que outra pessoa também podia. E assim tudo se foi muito facilmente. Meias, calcinhas e escova de dentes. Pijama, chinelo de dedo e a foto da minha mãe sorrindo na carteira. Levaram minha única ferramenta de trabalho e todos os documentos que comprovam que eu vivo, inclusive a carteira de vacinação de 1993. Me deixaram sem dinheiro, sem cartões, sem roupas, sem maquiagens, sem óculos, sem escova de cabelo. Sem tudo aquilo que é trivial pra poder sair na rua.

Como se isso não bastasse, levaram minha voz e o que sobrava imaterialmente. O pouco equilíbrio emocional conquistado nos últimos meses desapareceu como fumaça. Todos os meus planos de futuro e a confiança nas pessoas se foram. Enquanto 2019 foi um ano muito isolado e solitário na estrada, em 2020 eu estava finalmente aceitando os convites. Meu senso de segurança virou história.

Naquele dia, que eu não lembro o número, mas era domingo, terminei a tarde na polícia e a noite num quarto de hotel em uma cidade estranha. Na manhã seguinte, o mundo acordou como de costume, mas era outro mundo. Agora eu era a estrangeira sem documentos e sem roupas para vestir. A estrangeira com futuro incerto e sem ter como trabalhar para recuperar as perdas. Naquela noite, um casal que nunca tinha nos conhecido antes nos recebeu na casa deles e, por um momento, me senti confortada no conforto deles. O desespero real veio nos dias seguintes, quando não acordei do pesadelo. Os portugueses continuavam me tratando como se eu tivesse cometido o crime do roubo e da colonização. Me negaram um passaporte. Nunca tinha ouvido falar que um consulado podia negar um passaporte a quem teve ele roubado. Mas a gente confia demais no que lê por aí e é no cara a cara que as coisas ficam sérias. Ouvem meu sotaque e já mudam a expressão. Pude ignorar isso por um mês, mas naquele momento, com as pernas trêmulas e o boletim da polícia na mão, lágrimas vieram aos olhos. Mas eu fui roubada, eu continuava repetindo, sem saber o que mais dizer. Não perdi, não esqueci no ônibus. A mulher implicou que faltava a palavra brasileiro ao lado de passaporte na ocorrência. E só por isso ela não tinha como saber que era um passaporte brasileiro que eu tinha. Não foi eu que escrevi, foi o policial, também português. Quem me roubou também era português, e tinha um carro, que era muito mais do que eu jamais tive. Vestindo roupas emprestadas, de pé em frente ao balcão dividido por vidro, me senti muito menos do que humana.

Depois de uma súplica na internet, alguns desconhecidos se ofereceram para ajudar, mas era uma ajuda muito escassa, muito superficial comparada ao que tinha sido tirado de mim. Não era culpa deles, claro, mas eu precisava apoio, e o apoio necessário — o emocional — não veio de país nenhum. O silêncio de alguns machucou mais do que a portuguesa no consulado. Agora vejo por que; ninguém podia compreender o que é ter a sua vida inteira roubada em duas horas. Raramente isso acontece. Eu já fui roubada antes, no Brasil, mais de uma vez. Mas então pude voltar para casa e ter tudo que precisava para os dias seguintes, para continuar a vida. Dessa vez, não. Minha vida inteira foi desestruturada porque de repente eu não tinha tudo aquilo que a torna possível.

A agonia de ter tudo virado de cabeça pra baixo de uma hora pra outra mais uma vez me faz pensar em desistir de respirar. Desmorono em lágrimas pelo menos três vezes por dia. Mais uma vez, fazer tudo certo e, mesmo assim, terminar em uma situação de merda. Um dos piores cenários possíveis da lista de piores cenários possíveis. Se deparar com a indiferença e a incompreensão e pensar que é preciso reconstruir tudo, mais uma vez, se eu quiser continuar.

Sei que o problema não são as coisas em si, mas o que esse evento significa dentro do quadro maior dos últimos dois anos. O trauma de ter sua casa invadida e todos os seus planos roubados. Não restou saúde aqui não. A bala foi direto na minha cabeça. Como restaria? Preferia estar no hospital. Sempre que dou um passo à frente, vem alguém e me arrasta 50 passos para trás. Pela terceira vez, ter que refazer tudo desde os primeiros passos, do mesmo lugar de onde saí. E sabe-se lá quanto tempo vai levar dessa vez.

Tenho certeza de que estou sendo testada. Você realmente quer isso? O quanto você quer? E eu já não sei se quero jogar. Se eu soubesse de tudo isso, lá atrás, eu não sei se faria de novo.

--

--

Dayanne Dockhorn
Estrangeira

ruim com as palavras. me escreva: dayannedockhorn@gmail.com me encontre nas redes: @dayannedockhorn