Estranho Mundo #06 > Realidade é coisa do passado

Eric Novello
9 min readNov 27, 2016

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[Estranho Mundo — Ano 2]

“É muito difícil competir com a realidade”, todo autor já pensou isso ao menos uma vez. Mas com o mundo de ponta-cabeça, será que a realidade ainda faz sentido? Philip K. Dick, Adriana Amaral, Vilto Reis e Britney Spears nos ajudam a pensar a respeito.

Essa é a Adriana.

A pesquisadora Adriana Amaral, que tem um currículo que não cabe aqui nesta carta, outro dia deu uma tuitada que me deixou pensativo. Com um pós-doc em mídia, cultura e comunicação, e consultora de cultura digital, ela comentava certo tipo de legenda em fotos do Instagram: “É a performance da vida interessante e misteriosa.”

A carapuça não veio no meu número exato, mas forçando o pé e apertando o dedão consegui vesti-la por uns minutos. De fato, vinha pensando nisso há um mês mais ou menos. Nessa curadoria de conteúdo que fazemos de nós mesmos na internet e o quanto isso nos transformou em personagens às vezes distantes e às vezes muito próximos de quem somos de verdade, mas nem por isso menos personagens.

Reavaliando meu comportamento a partir de algo tão simples quanto a escolha de uma foto para o Instagram, fiquei com uma pergunta na cabeça, Eric: A realidade ainda é relevante? E com isso em mente, foi inevitável pensar no Philip K. Dick

Vocês já ouviram falar de Philip K. Dick?

Um robô com a cara do Philip K. Dick.

Ele foi um autor americano com o nome associado principalmente à ficção científica. É mais uma daquelas histórias de artistas que viveram sem dinheiro e se ferraram de inúmeras maneiras diferentes à margem do reconhecimento merecido. Ele escrevia rápido para poder vender as histórias, o texto em si talvez não fosse dos melhores, mas ele sempre arrumava um jeito de explorar temas interessantes, com abordagens políticas e filosóficas sobre a nossa sociedade.

Em tudo que li dele (menos do que deveria!) se destacava a mesma questão central: a fragilidade do real.

Meu primeiro contato com o K. Dick foi ainda garoto quando meus pais alugaram o filme “Blade Runner — O caçador de androides”, adaptação de seu livro “Androides sonham com ovelhas elétricas?”. Hoje considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema, na época Blade Runner foi um fracasso de bilheteria. Sobreviveu ganhando aura de cult e, mais tarde, firmou sua relevância.
Sobre sua trama, o que me importa aqui é o seguinte: Estamos no futuro, num planeta Terra para lá de decadente, corrupto e poluído, tipo o nosso. Nesse futuro existem os replicantes — androides criados a partir de bioengenharia e que são, a princípio, indistinguíveis dos humanos. Ou seja, uma ficção muito próxima do real.

O protagonista do filme é Deckard (Harrison Ford), o tal caçador de androides, que vai a Los Angeles ver se encontra replicantes fugitivos de uma treta que aconteceu em outro planeta. O único jeito de distingui-los é através de um teste que avalia funções biológicas diante de respostas emocionais. E assim começa a caçada.

A história tem um questionamento importante sobre o valor da vida, o que separa o humano desse “quase humano”, e eu, muito novo, não entendia nada disso. Curtia mesmo era ver aqueles personagens maravilhosos e rever sem parar a cena da Pris, personagem replicante da Daryl Hannah, dando saltos mortais para tentar matar o Deckard durante a luta. Ela era incrível e sigo com a cena na cabeça até hoje.

Parando pra pensar, é engraçado que meu primeiro crush, veja só, tenha sido uma androide assassina num filme distópico cyberpunk inspirado em Philip K. Dick. Eu era tão fascinado por ela que meu pai até dormiu tranquilo por uns anos. “That’s my boy, tendo sonhos com as piruetas da Pris.”

Posso não lembrar dos sonhos de infância, mas lembro que queria morar no mundo de Blade Runner. Foi a primeira vez que atravessei essa barreira do real e do quase real e me interessei por um universo ficcional pra valer, indo além de “ah, mais um filme legal que vi na TV”.

Daryl Hannah — Pris ❤

Não vou contar aqui o filme. Se você nunca viu, veja. Vou apenas repetir o ponto principal: há um limite muito tênue entre o que é real e o que não é. E tem gente (governos, corporações, o que for) que entende o valor dessa relação e tenta dominá-la a todo custo.

Philip K. Dick tem uma frase clássica sobre a realidade que é a seguinte:

“Realidade é aquilo que, quando você deixa de acreditar, não desaparece”.

Sabe aquela cena de filme de terror em que a vítima vê o assassino, fecha os olhos e fica repetindo “você não é real, você não é real, você não é real”. E aí, quando abre os olhos, o assassino ainda está lá e a pessoa morre? Isso mesmo.

A frase é ótima por si só, e fica melhor ainda se você parar pra pensar que o K. Dick não acreditava na realidade do mesmo modo que a maioria de nós. Ele tinha esquizofrenia e usava drogas numa quantidade considerável, o que não devia ser uma boa combinação. Ainda preciso ler a biografia “Eu estou vivo, vocês estão mortos”, que a Editora Aleph publicou ano passado, para me inteirar melhor das pirações dickianas. Por enquanto, me atenho a um vídeo no Youtube em que o K. Dick discursa para uma plateia incrédula dizendo ter provas de estarmos vivendo em uma simulação virtual. Em 1977, 22 anos antes do filme The Matrix, um irmão bem próximo dos questionamentos do autor.

A conclusão dele era muito simples: A nossa realidade não existe. Não do jeito que acreditamos, pelo menos.

Talvez ele estivesse certo, vai saber. Vai ver somos mesmo uma simulação virtual e a mulher que comanda tudo isso saiu para almoçar e o gato dela subiu no teclado e desconfigurou a parada toda. Isso explicaria tanta coisa…

Vocês já ouviram falar de Britney Spears?

Acho que atualmente ninguém ecoa mais o meu amor pelo pós-humanismo iniciado com Blade Runner do que a Britney Spears. É sério.
A Britney se lançou em 1999, no auge do fenômeno das boy bands. Embora tivesse um alcance vocal bem limitado, ela de vez em quando se arriscava a cantar ao vivo. Além de parecer a Barbie humana / materialização do ideal de garota americana (e notem como os limites da realidade já estão sendo testados aqui), seu grande talento era saber dançar. Ela dançava muito. Na fase em que todo mundo arrumava seus dançarinos em posição de pinos de boliche, mas dançava. O tempo passou, ela teve uma pane emocional, raspou a cabeça e precisou parar para colocar a vida nos eixos.

Britney arrasando na coreografia

Quando voltou, a Britney não era mais aquela pessoa. Era algo muito, muito próximo, mas claramente diferente. Entendem o que estou querendo dizer aqui? A Britney é uma replicante!

Tá, essa parte talvez não seja verdade. Mas esse distanciamento ínfimo que separa a Britney de antes e a de agora é perceptível. Um lag do real e da percepção do real. A Britney de hoje não canta, mas é muito comum ver em redes sociais elogios à sua voz. A Britney de hoje dança muito pouco, mas, da mesma forma, existe essa percepção de seu talento como dançarina. A Britney basicamente só precisa existir para continuar sendo quem é (ou quem foi). E talvez, um dia, nem isso seja necessário.

Pensa comigo.

Britney Spears sendo linda. Ou seria a Brit-X?

Estamos no futuro, Britney não existe mais. Ela pode ter morrido, se aposentado, depende de quanto tempo estivermos lá na frente, ano 2080–2150. Por uma questão de registro de marca, o nome Britney Spears não pode ser usado, mas sua gravadora continua a lançar músicas da Brit-X. Os clipes são animações extremamente realistas inspiradas na sua imagem aos 35 anos de idade. As músicas têm a mesma voz. Usam o mesmo vocoder que a Britney usava. É ela, mas não é ela. Não é ela, mas é ela. E é daí que tiro a pergunta: faria alguma diferença ser a Britney real, a Britney Replicante ou a Brit-X? A sensação causada nos fãs, a reação emocional, seria a mesma. Ela teria fãs, ela teria hits. As pessoas repetiriam os vídeos para aprender a coreografia. Dançariam e cantariam as músicas nas baladas. Dependendo do avanço tecnológico, iriam inclusive aos shows! A quem eu quero enganar? Eu iria a um show assim dos meus ídolos.

O Gorillaz tá aí para mostrar que é possível. Algo que, em outra esfera, o Krafkwerk faz desde 1970. A identidade replicante na era da reprodutibilidade técnica.

Somos todos Brit-X?

O Vilto Reis, autor e editor do site Homo literaturs e da Editora Nocaute, trouxe uma percepção parecida para a literatura: “A impressão que tenho é que as pessoas pararam de escrever sobre pessoas. Agora escrevem personagens baseados em personagens.”

E não é que ele tem razão? Com mais atenção dá para notar as diferenças. Personagens que poderiam tomar um vinho com a gente na sala de casa… E personagens muito próximos de algo real, mas inspirados em personagens de séries, filmes, artistas, que se inspiraram em personagens que se inspiraram em personagens que algum dia vieram de um diálogo com pessoas reais. Quem sabe, inspirados em pessoas que um dia foram reais, mas que de tanto investirem nessa lapidação de uma imagem foram se transformando em mais uma Brit-X das redes sociais, um novo uso e entendimento de arquétipos. Acho que todos nós temos um amigo ou dois assim. E já agimos assim em alguma situação.

Vilto Reis dando dicas no seu canal

Em parte, acho isso desesperador: qualquer um pode criar notícias no whatsapp, nas redes sociais, e elas viralizam com o mesmo peso, o mesmo valor da realidade. “Se tá na internet, só pode ser verdade!” Tem um Trump eleito pra ninguém se esquecer disso, post-truth escolhida como palavra do ano e o duplipensar, como lembrou a Bárbara Morais. Por outro lado, também acho libertador. Negro não pode isso, gay não pode aquilo, trans não pode não sei o quê. Mulher não pode aquilo outro. Tudo isso foram “realidades” criadas pelos detentores do poder de criar essas realidades durante nossa história. Só que agora as rédeas da realidade foram parar nas mãos de todo mundo. E se é mais fácil construir novas realidades, construir novas narrativas, aprenderemos a usar isso a nosso favor.

Me pergunto o que o Seu Felipe diria disso tudo. Talvez concordasse que a realidade deixou de ser relevante. Talvez dissesse que ela só se fragmentou em milhões de pedaços, e ficou mais importante do que nunca. Se a possibilidade de definir realidades se tornou mais democrática (e estamos todos ficando loucos no processo, mas, yey!, quem se importa?), não podemos deixar a oportunidade passar.

Gorillaz e Madonna dividem o palco

Lembrando que…

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Até a próxima, folks!
Fiquem bem.

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