Fausto

Helen Araújo
Estúdio São Jerônimo
9 min readMar 31, 2020

--

O texto abaixo foi atividade de conclusão da disciplina “História, Sociedade e Trabalho”, ministrada pelos Prof. Drs. Claudinei Cássio de Rezende e Antonio Rago Filho, e que faz parte do curso de especialização (lato sensu) História, Sociedade e Cultura, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP.

Fausto é um personagem icônico na História da Arte e da Literatura, e na História como um todo. Seu arquétipo tem me acompanhado desde então: do estudioso de aspecto eremita ao criador ambicioso, que conquista e transforma. Ambos os aspectos, em partes, se mesclam à missão e característica do Estúdio São Jerônimo. O texto em si, que analisa a obra de Goethe, relacionando-a com Chespirito e uma comédia dramática estadunidense, é tudo o que Estúdio São Jerônimo pretende ser: simbólico, associativo, divertido e sério, contrastante, sarcástico, contraditório, mutável, marginal.

Se faz necessário adiantar que o texto contem spoilers.

Fausto I, de Goethe [1]

Um polímata encavernado em sua sala de estudos já não vê sentido na vida, por esta estar desconectada da realidade material. Fausto é um médico e estudioso que já não se satisfaz com estudos ensimesmados. Gostaria de experimentar muito mais vida do que experimentou com seus estudos solitários.

Já velho e sem expectativa, decide se matar. A ponto de beber o veneno que lhe daria cabo da vida, ouve os sinos da igreja que comemorava a páscoa naquele momento. Mais por nostalgia do que por fé, o velho deixa cair o vidro de veneno e é salvo. O badalar dos sinos o lembra da infância e de seus sentimentos bons e puros, trazendo-lhe, talvez, esperança.

Ao sair de casa e relacionar-se novamente com o mundo exterior, é acompanhado por um cão preto. É reconhecido pelos moradores da vila, é tido como bem-vindo, recebe agradecimentos e elogios ao pai, que também fora médico. Nesse contato, Fausto recorda-se do motivo de ter cortado relações com o mundo exterior e se isolado em sua sala com livros embolorados: a medicina não especializada de pai e filho não só salvou, como matou pessoas, e Fausto sente culpa, tornando a aborrecer-se com a vida.

Novamente em casa, acompanhado do cão, vê o animal transformar-se em outra criatura: Mefistófeles, o demônio que apostou com Deus que corromperia e levaria sua alma. Travestido em forma humana, Mefisto convence Fausto a vender sua alma, esperando logo conseguir seu intento.

Mephisto. Eduard von Grützner, 1895

Os primeiros desejos que concede ao estudioso são a juventude e o amor de uma mulher. Uma feiticeira rejuvenesce Fausto e ele se encontra com Gretchen (Margarida), uma adolescente fervorosamente cristã. De primeiro, ela se esquiva dele, mas não sem se sentir abalada pela abordagem do agora rapaz.

Com Mefisto, Fausto consegue conquistar a menina, dando-lhe joias e se encontrando com ela na casa da vizinha Marta. Desse relacionamento romântico entre um estudioso de posses e uma jovem não tão bem de vida que mora com a mãe e com irmão soldado, dão-se uma série de tragédias, de responsabilidades que só são atribuídas à moça: a morte do irmão, causada por Fausto — Valentim, o irmão, antes de morrer, faz questão de julgar moralmente Gretchen, um objeto de sua vaidade perante a sociedade, apenas –; a morte da mãe — o remédio que Gretchen lhe dá para dormir, conseguido a partir de Mefistófeles, a mata –; a morte do filho de Gretchen e Fausto, atribuída a ela própria, que é presa e condenada, tanto à morte como moralmente pela sociedade que a rodeia.

Enquanto a amada sofria esse julgamento sem ninguém em sua defesa, Fausto estava com Mefisto na tradicional Noite de Valburga. Ao saber dos acontecimentos, vai diretamente à cela salvar sua Margarida. A moça primeiro confunde Fausto com o carcereiro, e depois se nega a ser salva, pois não se considera do mesmo mundo que Fausto, não quer chegar nem perto da criatura demoníaca que o acompanha, e só acredita que poderá ser salva cumprindo sua sina e, assim, recebendo o perdão divino.

Tudo que é sólido desmancha no ar

Fausto: O Sonhador, O Amador, O Fomentador.

Em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman divide três momentos de Fausto, analisando os dois volumes da obra de Goethe. O primeiro momento é O Sonhador, onde o personagem filosofa sobre a utilidade de todo o seu conhecimento perante a sociedade que o cerca. A produção ensimesmada lhe é inútil se não colabora com o desenvolvimento econômico, social, moral da humanidade. Isto é, como mostra Berman, característica do próprio Goethe, sempre interessado nas inovações tecnológicas de seu tempo.

Em O Amador, Fausto é o homem apaixonado por Gretchen, jovem, cheio de ideias e pronto para a ação. Ele aprende a amar e a se relacionar com o mundo que o cerca, após anos enfornado dentro de casa. Cria-se nele uma autoestima, Fausto desenvolve-se como pessoa.

O Fomentador ocupa todo o segundo livro. É quando Fausto perde Gretchen e se vê como homem que põe em ação tudo aquilo que sonhou, e conquista territórios para essa materialização através do trabalho explorado de centenas, milhares de trabalhadores locais e estrangeiros. O desenvolvimento parte de si para o meio. Fausto transforma a paisagem e a dinâmica do espaço, com novas formas de trabalho e de relação de poder entre trabalhador e empregador. Seria a entrada daquela sociedade no mundo moderno, reflexo do que viveu Goethe nos sessenta anos de produção da obra. Da revolução francesa à revolução industrial, Goethe viu sua sociedade se transformar, e viu com muito entusiasmo, ideias e projeções, a partir do contato e concordância de ideias com o jornal saint-simoniano Le Globe.

Fausto, de idealista e apaixonado, quando tem o poder em mãos torna-se inclemente. Tudo é possível e aceitável desde que seus projetos se cumpram. E ele quer cumpri-los não para lucro e bel-prazer, mas acreditando piamente que suas ideias postas em prática, materializadas, serão de benefício para toda a população afetada, a longo prazo. Sente-se superando a própria natureza e útil, devolvendo ao mundo o conhecimento adquirido e acumulado em vida.

Por todos esses anos, Mefistófeles não conseguiu levar a alma de Fausto, porque só conseguiria quando este dissesse estar plenamente vivo: “sentindo em mim felicidade tão alta, gozo agora o instante mais sublime”[2].

E nem com o amor verdadeiro, riquezas ou juventude Fausto se sentiu assim. Só se sentiu deste modo ao ver que dominava tudo aquilo que podia ver em seu horizonte, inclusive a propriedade do casal de anciãos Filemo e Báucia, mortos por Mefistófeles por se recusarem a sair do local. Sem se sentir culpado, “apenas entristecido” pelo assassínio, Fausto se sente pleno em sua conquista, e é visitado por Necessidade, Pobreza, Culpa e Ansiedade, conseguindo expulsar as três primeiras. A Ansiedade, que ele não conseguira controlar ou superar, lhe solta um bafo no rosto antes de ir embora, cegando-o, e diz que não era de agora a sua cegueira, mas da vida inteira, ao passar por cima de tudo e de todos, em pacto com o demônio. A partir desse acontecimento, Fausto tem sua alma levada e Mefistófeles vence sua aposta com Deus.

Fausto na Cultura POP

Chapolin Colorado

Fausto é arquétipo[3] do desenvolvimento na era do capital, e continua bem presente em nossa sociedade. Diversas obras ou são claramente baseadas nos livros de Goethe — ou mesmo nas obras anteriores, ou no próprio Fausto do XVI –, ou se assemelham, talvez inconscientemente.[4] Marshall Berman cita Capitão América e o Doutor Fausto, além de grandes capitalistas ou governantes não necessariamente capitalistas (Stalin) com postura faustica ou pseudofaustica. É possível citar para além desses exemplos.

Chespirito[5], o mexicano Roberto Gomez Bolaños, encenou diversas vezes o episódio De Acordo com o Diabo, no seu seriado Chapolin Colorado. Existem versões em que Mefistófeles é interpretado por Ramón Valdés (versão mais conhecida, de El Chapulin Colorado, de 1976) e Rubén Aguirre (versão mais recente, de Chespirito, de 1982). Na peça, encena-se Fausto I com adaptações. Margarida (Florinda Meza em 1976 e María Antonieta de las Nieves em 1982) é o grande e único desejo do velho Fausto, interpretado pelo próprio Chespirito. Em contrato com Mefistófeles, ele rejuvenesce 50 anos com a mágica de Chirrin Chirrion, varinha mágica que traz tudo através de um “Chirrin” e leva tudo embora através de um “Chirrion”.

Ao perceber que a moça não quer nada com ele, Fausto a faz sumir com a varinha mágica. Mefisto então vem cobrar o contrato, mas também o feitiço vira contra o feiticeiro: Fausto lança-lhe um “chirrion” no contrato, que desaparece, não podendo ser cumprido. Essa história é contada por Chapolin Colorado, o Polegar Vermelho.

Chapolin Colorado, Roberto Gomez Bolaños

Mefistotélico por si só, o herói mexicano relata a história de fausto para o noivo da filha de um “cientista maluco” (mais um arquétipo), que pretendia roubar do sogro documentos com projetos secretos, usurpando poder, fama e possíveis lucros com o material. Ao ouvir a história de Fausto, o rapaz desiste do furto.

CLICK

Mais indiretamente, talvez, essa mesma história pode ser vista em Click, de Frank Coraci. No filme, Fausto seria Michael Newman, personagem interpretado por Adam Sandler. Um homem com emprego e família constituída, mas sem tempo e/ou vontade de passar por certas situações. Cansado, ele se deita num colchão à venda numa loja e ali conhece Morty, interpretado por Christopher Walken. Morty lhe dá um controle remoto com funções especiais: pode retroceder e avançar no tempo, entre outras atividades, como se a vida acontecesse dentro de uma televisão.

Empolgado com tamanho poder sobre o tempo, Michael acaba ativando o modo automático e as coisas saem fora de controle. No final do filme, descobrimos que Morty é na verdade o Anjo da Morte, uma bela analogia a Mefistófeles, e completamente ligado a diversos outros arquétipos relacionados ao tempo.[6] No fim da história, que também envolve poder, inclemência, desenvolvimento imposto e sacrifício de personagens secundários, tudo não passava de um sonho, e Michael tem sua segunda chance de construção de uma vida seguindo por outro caminho.

Christopher Walken como Morty, o anjo da morte

Referências

BERMAN, Marshall. I, Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento. In: Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p.50–108.

CLICK. Direção de Frank Coraci. EUA: Columbia Pictures, 2006.

EL CHIRRIN CHIRRIÓN DEL DIABLO. In: Chespirito. Direção de Carmén Ochoa, Roberto Gomez Bolaños e Roberto Gomez Fernandéz. México: Canal 8, 1982.

EL CHIRRIN CHIRRIÓN DEL DIABLO. In: El Chapulín Colorado. Direção de Roberto Gomez Bolaños. México: Televisa, 1976.

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São Paulo: Círculo do Livro, 1985. 2 vol. Trad. Silvio Meira.

Notas

[1] Johann Wolfgang Goethe. Romancista, poeta, dramaturgo, estadista alemão, nascido em Frankfurt em 1749 e falecido em Weimar, em 1832.

[2] GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São Paulo: Círculo do Livro, 1985. Vol II. Trad. Silvio Meira. p. 442

[3] Termo cunhado por Carl Gustav Jung.

[4] Ver JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017. p. 15–131.

[5] Shakespearezinho, “derivado del diminutivo de la pronunciación españolizada del apellido de William Shakespeare — fonéticamente Chekspir — , debido a la estatura de Gómez Bolaños y por el talento de este para escribir historias que asemejaba a las de Shakespeare”. Disponível em: Wikipedia. Acesso em 10 dez. 2019.

[6] Talvez os mais famosos desses arquétipos sejam o mitos gregos de Hades, Deus do Submundo, e Cronos -, o Saturno romano. O segundo, titã e pai de Zeus, conhecido por reger o tempo dos homens, é muitas vezes caracterizado com uma gadanha que ceifa a vida na terra — instrumento que utilizou para castrar o pai, Urano.

Saturno devorando a su hijo. Francisco Goya, c. 1819–23.

--

--