História das ficções interativas
Tudo começa com a espeleologia (estudo da formação e constituição de grutas e cavernas naturais)
A história das ficções interativas digitais começa com um dos primeiros jogos de computador. Criado por William Crowther em 1976 (com o auxílio de Don Woods a partir de 1977), Adventure foi programado na linguagem Fortran, no tempo em que pouquíssimas pessoas tinham acesso a computadores, antes ainda da Atari. Era um jogo totalmente textual. Crowther era explorador de cavernas e programador, e estava criando uma simulação em texto de um sistema de cavernas reais dos Estados Unidos. Havia descrições de vários locais da caverna, e o jogador se movia usando pontos cardinais: norte, sul, leste e oeste (os exploradores de cavernas usavam bússolas para se mover nas cavernas). Também podia manipular objetos como uma lanterna e uma corda. Crowther também era jogador do Dungeons & Dragons original, e adicionou elementos de fantasia à caverna, iniciando o que seriam os jogos de RPG de computador.
Em 1977, apenas um ano após Steve Jobs e Steve Wozniak fundarem a Apple e lançarem o primeiro computador pessoal de sucesso, estudantes do curso de ciências da computação do MIT começam a criar a estrutura de Zork a partir do código de Adventure. A triologia Zork foi uma das séries mais bem sucedidas de jogos de computador, e adicionava um parser (interpretador de comandos) bem mais complexo do que Adventure, permitindo uma jogabilidade melhor. O jogo foi completado em 1979, e nesse ano dez estudantes do MIT fundam a Infocom, que se tornou a grande produtora de ficções interativas da era comercial.
Algumas foram para os gráficos
Nos anos 80 a ficção interativa se espalhou graças à popularização dos computadores. A diversidade de temas aumentou, e as ficções interativas foram sendo reconhecidas pelo seu valor próprio. Em 1980, enquanto Zork estava sendo comercializado, registra-se a criação do primeiro adventure gráfico: Mystery House, de Roberta Williams. Apesar de ser em preto e branco, sem sons e sem animações, os gráficos eram atrativos para a época. O tema, fugindo da fantasia medieval, também trouxe um novo público para os jogos de computador.
Roberta e Ken Williams fundaram a On-Line Systems, que mais tarde se tornou a Sierra On-Line. Roberta permaneceu sendo uma grande influência nos jogos de RPG e de aventura, criando a série mais clássica de jogos de aventura gráfica: King’s Quest. O oitavo e último episódio da série foi lançado em 1998, com gráficos em 3D. Em 2015 uma nova série com o mesmo nome foi lançada, seguindo o espírito da antiga, mas criada por outras pessoas e com jogabilidade e gráficos atuais. Roberta Williams permanece um exemplo da presença decisiva das mulheres na história da ficção interativa e dos jogos de computador.
Outras para a literatura
Em 1981, Olli J. Paavola da Universidade de Helsinque na Finlândia desenvolveu a primeira ficção interativa baseada num livro: Lord era aventura de texto baseada em Senhor dos Anéis de Tolkien. Em 1984, Robert Pinsky escreve uma ficção interativa com elementos literários originais: Mindwheel, um romance eletrônico de ficção científica. O roteiro do jogo era bastante elaborado: o jogador deveria entrar na mente de quatro pessoas para salvar seu mundo. Foi também o que podemos chamar de uma ficção interativa de ‘suspense psicológico’.
Em 1984 também foi lançado a ficção interativa mais bem vendida depois de Zork, o Guia do mochileiro das galáxias, baseado no livro de mesmo nome (que teve uma versão cinematográfica em 2005) e feito pelo próprio autor do livro, Douglas Adams. Um dos atrativos do jogo, além da linguagem cômica, eram os brindes que vinham na caixa do jogo (chamados de feelies): um broche com os dizeres “Não entre em pânico”; um emaranhado de algodão como o que Arthur encontra no seu bolso; a ordem de destruição da casa de Arthur e outra da Terra; um recipiente plástico vazio com os dizeres: “Frota estelar microscópica oficial”; “óculos de sol sensíveis ao perigo” (opacos e de papelão, usados para “evitar ler as dicas”) e uma brochura chamada “Quantas vezes isso já aconteceu com você?”, uma propaganda do ficcional Guia do mochileiro das galáxias. Na lista de conteúdos da caixa também estava escrito “No tea” (sem chá), que era um objeto no jogo, o primeiro objeto com o qual se podia interagir numa ficção interativa que era completamente abstrato.
Os primeiros textos interativos foram escritos por programadores que os consideravam principalmente jogos, e a literatura que eles criaram não era sofisticada. O próprio computador, no entanto, não limita a ficção interativa a trabalhos frívolos. Considere o desenvolvimento do filme. O filme inicial era um meio pouco sofisticado, “tão bruto em seus estágios iniciais que era considerado desprezível” (Deer, H. and Deer, I. The Popular Arts: A Critical Reader. New York: Charles Scribners Sons, 1967, page 9). Somente com o filme “Nascimento de uma nação” de D. W. Griffith e, mais tarde, os filmes de Charlie Chaplin, o público se deu conta de que o filme podia transmitir e esteticamente amadurecer experiências.
Agora, histórias interativas estão sendo escritas por autores tradicionais, com assistência técnica de programadores. Talvez seja necessário alguém que seja ao mesmo tempo programador e escritor para explorar a promessa artística da ficção interativa e criar obras de literatura que se encaixam nos clássicos da literatura tradicional.
(Mary Ann Buckles na revista BYTE, em 1987)
O fim da era comercial
Em 1986, a Infocom é vendida para a Activision, que fazia jogos para consoles (Atari principalmente). Apenas 3 anos mais tarde, em 1989, ela já se encontrava incapaz de competir com os consoles. Em 1991 e 1992 a Activision lança os pacotes Tesouros perdidos da Infocom 1 e 2, uma coleção dos melhores jogos da Infocom, incluindo Deadline (de 1982, um jogo de investigação) e Shogun (de 1989, baseado no livro de James Clavell). Depois disso, não houve mais viabilidade comercial para as ficções interativas, e sua produção se tornou praticamente hobby.
Em 1993, Graham Nelson escreve os direitos dos jogadores, um texto que auxilia o desenvolvimento de ficções interativas, trazendo novos criadores e novas teorias de criação de jogos. Nesse mesmo ano é lançado Myst, uma aventura gráfica que inaugurou um gênero de aventuras em cenários fantásticos.
Em 1995 acontece a primeira IFComp, um evento de premiações para as melhores ficções interativas do ano. Em 1996 ocorre também a primeira premiação XYZZY Awards, que premia as melhores obras em diversas categorias, incluindo “melhor NPC”, “melhor puzzle” e “melhor roteiro”. A partir dos anos 90 acontecem com mais frequência mostras e exibições de ficções interativas, assim como resenhas críticas, livros, artigos e teses acadêmicas sobre ficções interativas. Em 2004 é lançado o livro Twist little passages, de Nick Montort, que é uma abordagem crítica dos elementos computacionais das ficções interativas, o que chama novamente a atenção para esse gênero. Hoje, a competição de ficções interativas tem cada vez mais candidatos, premiações de mais de mil dólares, e novas linguagens de desenvolvimento de ficção interativa ainda estão sendo criadas e aperfeiçoadas. A base de dados de ficção interativa conta com cerca de 9.750 entradas. Muitas delas podem ser baixadas gratuitamente.
Fora dos EUA
A primeira ficção interativa a ser comercializada fora dos EUA provavelmente foi Acheton (Inglaterra, 1978). Eamon (1980) é outro exemplo britânico, um jogo de ficção interativa com parser de comando e elementos de RPG (estatísticas de personagem e inventório), cujo sistema foi usado para criar muitos outros jogos (mais de 200 até 2013).
Na Itália as ficções interativas eram distribuídas em fitas K7 que vinham em revistas. Houve uma produção profícua de ficções interativas por alguns anos. Na Espanha o mesmo aconteceu, mas com menos intensidade. A primeira ficção interativa comercial da Espanha foi Yenght, de 1983. O Club de Aventuras AD continua criando ficções interativas em Espanhol até hoje.
Ficções interativas no Brasil
Em 1983, Renato DeGiovani criou a primeira ficção interativa brasileira a ser comercializada, o jogo Aventuras na Selva, programado em Basic, posteriormente chamado de Amazônia (1985). Porém, mesmo depois da era comercial das ficções interativas, Renato incluiu gráficos no jogo e continuou comercializando ao invés de liberá-lo gratuitamente. Outras ficções interativas brasileiras criadas no mesmo sistema de Amazônia: Serra Pelada, Lenda da Gávea, Angra-I, Resgate na Serra do Roncador, Corporação Orion e Projeto STX.
O futuro das ficções interativas
Em seu documentário de 2010, Get Lamp, Jason Scott entrevistou várias pessoas que criaram e trabalharam com ficções interativas. Elas relatam como foi inesperada a queda de interesse nesse tipo de criação, e como ficaram chocadas com o fato de que praticamente ninguém sabe o que são ficções interativas. Na sua época, o sucesso foi tão grande que chegaram a acreditar que as ficções interativas substituiriam os livros! Com a popularização dos smartphones e novas ferramentas de compartilhamento, muitas criadoras de ficção interativa pensaram que o interesse iria ressurgir, mas isso não se concretizou. Houveram vários momentos em que as ficções interativas pareciam que iriam finalmente encontrar um lugar mais estável na cultura. Mas esses movimentos foram de curta duração ou muito localizados.
Novas ferramentas (como o Twine, criado em 2009) prometem aproximar novamente o público amplo da criação de jogos de texto. Pessoas como Emily Short, autora premiada e co-criadora do sistema Inform 7, continuam a contribuir para o avanço das ficções interativas, tanto em termos das técnicas narrativas quanto em temas explorados e tecnologias envolvidas. A IFComp se fortaleceu desde 2016, quando passou a ser organizada pela Fundação de Tecnologia de Ficção Interativa, criada também em 2016. A esperança de que o interesse pelas ficções interativas retorne ainda não morreu. O episódio Bandersnatch (2018), da série Black Mirror reacendeu essa esperança, introduzindo um público novo ao conceito de “ficção interativa”. A Netflix anunciou seu interesse em mais séries interativas. Quem sabe o que o futuro reserva para a ficção interativa?
Originally published at http://contrafatual.com on September 22, 2019.