O melhor monólogo da história dos videogames

Janos Biro Marques Leite
Estudos de jogos
Published in
3 min readJun 18, 2021

Aviso de spoilers do jogo Stubbs the Zombie in Rebel Without a Pulse (2005).

Stubbs é o protagonista de um jogo que inverte a lógica do apocalipse zumbi, nos colocando no papel de um zumbi em guerra contra uma cidade. Edward Stubblefield era apenas um pobre vendedor, batendo de porta em porta para conseguir seu sustento em plena Grande Depressão. É assim que ele conhece Maggie Monday, que se apaixona e fica gravida dele. Quando o pai de Maggie descobre, ele mata Edward e enterra seu corpo no meio do deserto. 26 anos depois, Stubbs “acorda” e sai de sua cova, transformado em zumbi, descobrindo-se no meio de uma cidade altamente tecnológica que foi construída onde ele estava enterrado. Ele então começa sua vingança contra a civilização criando um exército de zumbis.

O vocabulário dos zumbis é bastante limitado, tem uma única palavra: “brains” [cérebros]. Mas isso é suficiente para um grandioso discurso, que faz referência ao clássico filme de guerra de 1970, Patton.

O discurso de Stubbs poderia ser interpretado assim: “Os vivos nos odeiam, porque nós comemos os cérebros deles. Mas eles nos criaram usando esse mesmo cérebro. Ao nos negar, eles negam a si mesmos. O futuro inevitável da vida é a morte, e nós somos o FUTURO desta nação! Nós somos INEVITÁVEIS, e nós iremos VENCER!”. Em outras palavras: “CÉREBROS!”

O que há de atraente nos cérebros, para um zumbi, além do efeito de cura que ele tem no jogo? Os zumbis têm uma necessidade de devorar cérebros para se manter “vivos”, ou a presença de vida seria um simples incômodo, algo que precisa ser resolvido para que possam retornar à paz da inatividade? O primeiro episódio de Midnight Gospel lida com essa inversão também.

O ato de comer cérebros poderia ser meramente simbólico. Uma representação da vontade superando a racionalidade. Os zumbis são, nesse sentido, um símbolo da auto-traição inerente ao progresso. No jogo, os zumbis também representam uma classe social inferior, que é vista como nojenta e irracional pela classe elevada.

Apesar de Stubbs ser um zumbi sobrenatural, pois foi criado pelo desejo de vingança (ou, se preferir, por um “amor imortal”) e não por um vírus ou algo do tipo, a crítica ao progresso está implicada no cenário do jogo, uma cidade totalmente automatizada, onde ninguém trabalha e todos vivem sem nenhuma preocupação. Essa tecno-utopia é o resultado do projeto científico financiado por Andrew Monday, o homem mais rico do mundo, com ajuda de um cientista nazista. Andrew, na verdade, é o filho que Maggie teve com Edward. Sua reação ao descobrir que o zumbi que destruiu sua cidade é seu pai é hilária. Ele diz algo do tipo: “Meu pai era um vendedor?”, com um tom de desprezo. Ele está mais preocupado com a antiga profissão do pai do que com o fato de que ELE É UM ZUMBI.

Ao mesmo tempo que Stubbs caçoa dos valores estadunidenses, ele é um reflexo desses mesmos valores. Ele consegue fazer coisas que, aparentemente, nenhum outro zumbi consegue, como dirigir um carro ou dominar a mente de uma pessoa. A explicação para isso também é hilária: o que possibilita que ele seja tão bem sucedido é que seu “espírito empreendedor” de algum modo sobreviveu à sua transformação em zumbi, o que permite que ele descubra novas maneiras de usar seu corpo para derrotar seus inimigos. Stubbs se encaixa no arquétipo do “anti-herói” que se sente justificado em matar incontáveis pessoas por um motivo pessoal. O jogo acaba com Stubbs encontrando sua amada, comendo o cérebro dela, e fugindo com ela, agora transformada em zumbi, enquanto a cidade é destruída por uma bomba atômica. Um final feliz e romântico, em que o casal se beija e a tela fecha com um fade out em forma de coração.

Pode ser um jogo divertido de jogar, se você gosta de violência pura e simples, de ver muito sangue e vísceras (especialmente de policiais) e assistir seus inimigos se levantando depois de mortos para te ajudar. Mas o humor implícito e talvez até não intencional do jogo é incrível, especialmente nos comentários absolutamente indiferentes da robô que serve de “tutorial” durante o jogo e aparece no final para dizer: “Parece que o governo vai fazer um ataque aéreo na cidade. Por favor avise ao Sr. Andrew que ele tem 5 minutos antes que tudo vire cinzas. Tenha um bom dia”.

Por causa disso, eu elejo o monólogo monossilábico de Stubbs como o melhor monólogo da história dos videogames.

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Janos Biro Marques Leite
Estudos de jogos

Graduado em filosofia, escritor, tradutor e criador de jogos.