etnografismos: cartografias da pandemia

Etnografismos
etnografismos
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3 min readMay 9, 2020
Foto: Olivia von der Weid

A familiaridade de um mundo cada vez mais precariamente estável, ao qual mal estávamos acostumados, já vinha dando claros sinais de esgotamento. De uma hora pra outra, desabou. Nos últimos meses experimentamos a interrupção dos fluxos, a suspensão do tempo, o confinamento do espaço, a fragilização da vida, a intensificação do aspecto mutável dos contextos, dos cenários, das previsões. Vivemos sob o medo do contágio, a sombra do fim e a suspeição do futuro. Como um dos efeitos dessa onda vemos a produção avassaladora de instabilidades em subjetividades que nem sempre estão equipadas para absorvê-las.

Para atravessar o deserto sem ceder à sede do colapso e suas conhecidas patologias — medo, neurose, pânico, perda de sentido — é possível fazer do estranhamento um ninho. Reintegrar o sensível à existência, ativar corpos capazes de serem afetados sem sucumbir, respirando possibilidades criadoras e derramando novos mundos com suas existências vivas.

A fim de dar corpo a esta égide iniciamos um projeto coletivo do laboratório CONATUS, nos alimentando regularmente de etnografismos e poéticas de corpos sensíveis que, cada um em sua célula, exercitam uma observação e uma escrita afetiva, afetada e atenta sobre o que nos acontece. Nos munimos de um conjunto aberto de ferramentas (conceitos, imagens, trechos literários, sensibilidades, materiais e grafismos) que nos convidam a reconquistar a liberdade de experimentação, mantendo ativa a escuta antropológica, povoando nosso campo de histórias, alimentando o fogo da criação de novos sentidos para o que hoje nos investe.

Nos convidamos à desindividualização. Praticamos a colaboração em cada etapa do percurso, o desprendimento de si, a partilha dos processos, a coletivização dos meios, o desdobramento dos achados. Nossa escrita aqui é como a vida, porosa, movente, um trabalho interminável em contínuo andamento. Não constituímos, no entanto, uma única voz sobre os fenômenos que cartografamos. As singularidades se fazem sentir nas composições dos grafismos, permitindo ao visitante tirar suas próprias conclusões do que aproxima e do que diferencia as experiências. Somos um e somos únicos.

As grafias do tempo presente são experimentadas nos caminhos que percorremos ou deixamos de percorrer, nas atividades que antes não fazíamos no interior de nossas casas, nas entradas e saídas de portas, mudanças de cômodos, nos novos objetos corporificados, nos líquidos trocados e no compasso das tarefas cotidianas. Entendemos que os movimentos e ritmos das atividades humanas e não-humanas, no modo como se inscrevem no espaço vivido, são como formas de escrita. Fios que são como a extensão do corpo — linhas ao longo das quais se vive, que conduzem nossa percepção e ação no mundo.

Sem saber o que virá, improvisamos nossa itinerância, seguindo os modos do mundo à medida em que as coisas se desenrolam. Acompanhamos as forças e os cursos das coisas que estão se fazendo em nós e ao redor de nós. Convidamos aqueles que se sintam tocados pela experiência a rascunharem seus grafismos, abrindo a escuta para a nova realidade sensível que se apresenta. O diário como ferramenta para não arrefecer diante do colapso de antigos padrões, interna e externamente constituídos. Cultivar a potência transformadora do estranhamento no cotidiano, princípio antropológico por excelência. Darmos as mãos e nos lançarmos na vertiginosa atividade de criação de sentidos para as turbulências que nos alcançam.

Lançaremos algumas linhas-fio e acompanharemos os movimentos que irão se fazendo ao longo. Temos um lugar de origem, não sabemos onde vamos chegar. As idas e vindas, escorregões, quedas e tropeços farão parte do percurso, tão valorosos e constitutivos quanto os possíveis equilíbrios. Não nos preocupam os fins, mas a qualidade vivida nos meios. A vida nunca esteve tão em aberto. Ou sempre esteve, nós é que não estávamos prontos para a abertura. Seguimos seu impulso de indeterminação e persistência, tocando em frente, improvisando caminhos, encontrando frestas e reflorescendo no agregado de experiências que colhemos, aqui e ali. Emaranhando trajetórias, percepções e narrativas vamos construindo novas texturas para o presente. A cada composição nossas linhas se entrelaçam para formar, assim desejamos, um tecido vivo de significações.

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Exercício de escrita do tempo presente proposto pelos integrantes do CONATUS - laboratório de pesquisas sobre Corpos, Naturezas e Sentidos (antropologia/UFF).