Feridas

Etnografismos
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2 min readMay 30, 2022

2020 foi o ano em que a pandemia do COVID19 se estabeleceu por todo o mundo. O ano parecia de desastres externos e internos a muitos, na medida que os fatos nos enchiam de preocupações, medos e estresses. Em fevereiro, perdi minha madrinha. Foi meu primeiro grande luto na vida. No mesmo mês, as fortes chuvas arrasaram casas e vidas na minha cidade. Em março, eu fui ao enterro de quem tinha me consolado poucas semanas antes. Em abril, nem sei
dizer como estava. Em maio, perdi meu avô e não consegui ir em mais nenhum enterro. Os cinco primeiros meses foram desastrosos o suficiente, mas o ano se manteve como um carrasco. A dor do luto, do caos dentro e fora de mim, se expressaram fortemente no meu corpo. Ansiedade e crise de urticária absurdas de forma que nunca experimentei antes. A desesperança que a doença, o luto e a solidão me trouxeram, ela foi a causa de pensamentos suicidas. O desamparo diante de um sofrimento tão incessante é algo esmagadoramente solitário para qualquer ser. Eu sei disso, vivi isso. Mas também sei que tudo o que senti, tudo o que muitos sentiram, não foram só causados por 2020, mas pelos anos anteriores, em que nos forçamos a trabalhar e seguir, sem nos olhar e cuidar de nós mesmos. Toda a dor no corpo não surgiu do nada, mas foi evidenciada e extrapolada com as circunstâncias de 2020. Se eu pudesse contribuir com uma reflexão sobre aquele ano, não
seria nada pra longe da dor do luto que todos sentimos, a sensação de perceber o quanto somos frágeis e o quanto precisamos ser solidários uns com os outros. Aquilo que nos faz parecidos, a verdade por detrás de todas as aparências humanas, é a nossa vulnerabilidade. Apesar do caos político que também se instalou durante a pandemia, eu decidi aprender com as coisas particulares que vivi e praticá-las no meu grupo de alcance, compartilhando cuidados e pensamentos com as pessoas sobre a vida naquelas circunstâncias. A adaptação do homem ao meio sempre acontece, mas nem sempre é de uma
maneira saudável. Muitas vezes, é escondendo suas feridas para seguir em frente, como minha madrinha fazia e eu estava fazendo. Hoje, tento o máximo, o máximo mesmo, olhar as feridas de quem caminha comigo e lembrar que isso é muito mais importante do que qualquer outra responsabilidade na vida. É saber agir em amor sempre, pra que a vida e a morte não amarguem arrependimentos.

Cristiano

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Etnografismos
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Exercício de escrita do tempo presente proposto pelos integrantes do CONATUS - laboratório de pesquisas sobre Corpos, Naturezas e Sentidos (antropologia/UFF).