Etnografismos
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3 min readJun 24, 2022

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Poderia escrever três ou quatro momentos

Poderia escrever três ou quatro momentos diferentes sobre essa pandemia que a princípio acreditava que duraria de duas a quatro semanas, mas que já não consigo mais ver fim, pois já me iludi muito a respeito disso. Primeiro, um medo muito grande, uma angústia pelas primeiras mortes, mas aos poucos fui me sentindo menos insegura, pois eu e minha família conseguimos ficar realmente isolados. Meu pai era o único que saía, uma vez a cada quinze dias, para ir ao mercado. Eu, minha mãe e meu irmão não colocávamos o nariz nem no corredor do prédio. Tive que inventar lazer e prazer dentro de casa, coisa que era muito difícil pra mim, mas que aos poucos foi tomando forma. Mesmo com essa relativa segurança, escutar as notícias sobre as mortes
e demais consequências da pandemia me trazia desespero, mas o isolamento social já me afetava bem menos. Após cinco meses completamente isolados, meu pai voltou a trabalhar presencialmente e tivemos que começar a sair para mercado, farmácia e demais necessidades do dia a dia.
Nesse momento, fui pega de surpresa. Imaginei que essa possibilidade de poucas saídas me traria maior qualidade de vida, mas o isolamento passou a me incomodar muito mais, pois não me aliviava ver o mundo brevemente e acenar para conhecidos, eu queria muito mais. Então, comecei a sair para
fazer caminhadas, acabava encontrando conhecidos e ficava conversando, mantendo a distância e o uso de máscaras, que é algo que eu ainda acho muito estranho, ver alguém que você gosta, sente saudades e não poder chegar perto.
Aos poucos, fui sendo tomada por certo relaxamento. No fim do ano passado, eu já não evitava completamente idas ao mercado, por exemplo, o que me fez aos poucos flexibilizar os cuidados a chegar em casa. Antes, colocava toda a roupa para lavar, tomava banho, lavava meu cabelo e higienizava tudo por onde havia passado. Depois, passei a fazer isso com menos tensão e, se fosse buscar algo na portaria do prédio, por exemplo, já não tomava nenhum desses cuidados, só lavava minhas mãos ao voltar. Os outros momentos se resumem a oscilações entre estados de completo desespero e menor desespero em relação ao vírus. O isolamento pouco me incomodou no primeiro ano, porque eu me sentia mais do que feliz por ter meus familiares saudáveis, quando estávamos isolados. Não conseguia sentir falta de sair e me culpava quando esse sentimento vinha. Acho que a diferença, é que agora comecei a notar os efeitos que o isolamento social — que hoje em dia é absurdamente menor do
que já foi para mim — tem em como eu me sinto e como me relaciono, talvez porque meus pais tenham tomado as duas doses da vacina e, embora eu ainda sinta medo de que eles sejam contaminados, não é nada comparável ao que já foi, o que abriu espaço para outras sensações. Agora que meus pais estão vacinados, minha dificuldade para dormir e as constantes crises de ansiedade por conta disso foram embora, eu tenho tido tempo para sentir falta daquilo que faz com que eu me sinta viva e presente na minha própria vida. Eu não sabia que o contato com as pessoas e com o mundo de maneira geral, para além da tela do computador, do celular ou da televisão, que é onde eu passo a maior parte do tempo, era tão fundamental para como eu vivo e sinto os processos. É como se houvesse uma pessoa antes do isolamento que eu não consigo resgatar, porque ela ainda espera o fim da pandemia para voltar a viver fora do automático.

Júlia

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Etnografismos
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Exercício de escrita do tempo presente proposto pelos integrantes do CONATUS - laboratório de pesquisas sobre Corpos, Naturezas e Sentidos (antropologia/UFF).