A LIBERTAÇÃO DE SÉBASTIEN

“A Libertação de Sébastien” é o conto quatro, do mês de abril de 2019.
Escrito por Gean Paulo Naue para o projeto “EU CONTO: um conto por mês durante um ano”. Este arquivo digital foi elaborada pelo autor, valendo a ele todos os direitos autorais. O texto foi revisado por Leonardo Brockmann, criador da editora Casa das Letras.
Venâncio Aires / Rio Grande do Sul — Brasil

Luciana continuou a te limpar, e sem dizer uma palavra, entendeu que, há algum tempo, eu sabia que isso aconteceria. Tinha visto em teus olhos e tu não tentaste me esconder.

Teu corpo, Sébastien, que outrora sonhador deitou sobre mim, me fez de cama quando disse conseguir ver que o amor não se descobre, se frequenta; não é fruta adocicada a nascer entre as folhas, é tronco, que desde frágil ramo sustentou toda a viagem.

Eu te segurei, como fiz quando tua vida estava escorada em um fio do teu próprio cabelo. Senti que a copa, agora caída, apodreceria, servindo de alimento tanto aos que voam quanto aos que rastejam. Nesta segunda vez não havia o que ser feito, diferente da outra que te encontrei crivado de flechas.

Tu não deves lembrar, estavas apagado e indeterminado. Te trouxe para casa assim que percebi a vida ainda habitando em ti, mesmo que encontrada na menor das porções. Havia reflexões na tua mente e emoções no teu peito rasgado, e isso basta para desacreditar a morte.

Enquanto a tua família chorava do lado de fora, tirei uma a uma as lanças do teu corpo. Não as quebrei, lavei e deitei as pontas no chão e lá deixei, ao teu lado, a espera, porque sabia que elas eram parte de ti desde o profético instante que cravaram tua carne e alcançaram o teu sangue. Teu sangue que em minhas mãos parecia até mesmo ser o meu.

Irene, minha mãe, frágil, pediu que tapasse todos os buracos que haviam feito em ti. “Filho, faça! Não sou capaz de lidar com tanta dor. Eu só sei rezar”. Então, passei a tomar conta de ti, sozinho. Nem pedi a Deus que me ajudasse, ele já estava contigo e eu não queria atrapalhar.

A cada ferida que se curava, um dia se passava, Sébastien. Mesmo parecendo um sem vida, ela ainda estava lá, em ti, fraca, fraquinha, trêmula como a flâmula que iluminava o quarto.

Você, o capitão do exército, dormia em minha cama.

Eu, plantonista, trocava-te as amarras, as lavava e observava teu rosto na esperança de que um músculo, um pedaço de pele que fosse, se movesse. E no estático da tua presença, adormecia próximo aos teus pés. E nos sonhos, tão meus, tu começaste a aparecer, Sébastien. Perguntou-me como tu mesmo estavas. Querias saber sobre as feridas em ruínas, como andavam teus pais e se minha mãe conseguira comer algo. Respondia tudo. Nos sonhos tu não tinhas talho algum, assim eu podia me concentrar em teus olhos, antes sempre fechados.

Tu perguntaste como eu mesmo estava. Apaixonado por ti, desde o momento em que tirei-te a flecha do peito. Sei, Sébastien, que ela é a chave do teu coração. Dolorosa ao furar-te, dolorosa ao deixar-te.

As mãos que seguraram as rabeiras das flechas não tinham a intenção de te matar, mas de te trazer até mim, escrevendo o penúltimo capítulo da tua vida. Desde então, passei a sonhar todos as noites e dias contigo. Tu me deleitavas, me excitavas, me adoravas. Deitávamos, eu e tu, na terra, e nos cobríamos dela. Tu pegaste tua própria flecha e a atiraste em mim. Permiti que ficasse cravada no meu ser para guardar o nosso segredo.

Ao acordar, continuavas deitado a dormir e a curar-te. Dava-te de comer e de beber porque em sonho tu me davas o mesmo.

Tua família continuava te visitando e rezando.

Me diga, Sébastien, se é realmente tão difícil me provar que é mentira quando te ocupas de mim? Perguntava durante o dia e não recebia resposta. À noite tu dizias ser sim verdade toda a nossa desnudez: “As coisas mais autênticas acontecem enquanto dormimos”.

Quando despertaste são, era sábado. Eu estava lavando entre os dedos da tua mão com água morna.

Tu, animado não somente em sonhos meus. Naquele momento, alguém no mundo viu a luz mais pura que a luz da própria manhã.

Nunca abandonarei das tuas primeiras palavras depois de ter sarado: “Eu tenho visto o teu rosto”. Nunca esquecerei, Sébastien, do tecido dos teus lábios, exatamente os mesmos dos sonhos, beijando minhas mãos.

Lembrarei de todos os teus buracos tratados, de todos os novos que surgiram em mim durante as noites de cura.

Vou me lembrar para sempre de como levantou da cama convicto de que voltaria ao tirano que te desferiu, para provar a ele tua fé em outro homem.

Então vá! Deus te abençoe!

Eu sei que não te tenho, sei do que tu precisas provar e estarei a te esperar. Quem tira flechas do teu corpo uma, tira duas vezes.

Porém, na segunda ocasião não te colocaram contra aquela árvore e não te atufaram de lanças. Fizeram pior. Te atiraram na rua, jogaram em cima de ti pés e pedras. Arrastaram-te pelas alamedas. Cavalgaram no teu peito. Afundaram os teus olhos, lindos. Arrancaram os cachos da tua cabeça.

Deformaram-te, adulteraram o teu corpo e expulsaram a tua alma. Mesmo Luciana limpando tua pele, não havia maneira de te fazer voltar.

Sébastien, tu foste corajoso para provar que antes de mim, antes do guerreiro que eras, do exército do qual fizeste parte, de Roma por onde caminhaste e antes da tua mortalidade, acudia a fé nele. No outro homem.

Para os demais que te acompanharam, tu te tornaste um mártir. Para mim, não, Sébastien. Pra mim, tu és o meu amor e a minha vida.

Por detrás do conto

Sébastien sempre existiu, pelo menos para mim. Desde criança ele é uma figura presente na minha vida e o que mais chama atenção em sua presença é seu jeito nada sofredor de sofrer. Olhos mirando o longe, pouco sangue escorrendo pelas flechas cravadas em seu corpo e nenhum medo da morte. É impossível deixar de reparar em seu rosto de “tô nem aí” e no tecido que cobre o seu sexo. Inclusive, se não houvesse um tecido ali ninguém notaria as lanças, o alvo seria outro.
Para converter a atenção ao sofrimento que Sébastien não está sentindo, taparam-lhe, o fazendo decente para ser considerado um santo. Cobriram o amor e deixaram exposto o que menos importa, seus ferimentos.
Sébastien jamais desejou isso para si, estar pintado em museos, igrejas e casas, exposto a vários olhos que pouco sabem de sua verdadeira história. Ele jamais morreu com aquelas flechadas que tanto glorificam e se permaneceu vivo, não foi por santíssimo milagre, mas sim, porque uma pessoa de estômago fortalecido, coragem, amor e dedicação tratou de sarar seus buracos. Emboscaram-se, os dois, em curativos.
Neste conto decidi trazer um Sébastien pouco visto. Que de santo não tem nada, é totalmente mortal, se entrega para quem o ama. Já basta! Chega de vê-lo como estamos acostumados. Sébastien é mais do que um guerreiro romando, mártir, ele é um homem que não quer a nossa atenção, porque sabe que fez a coisa mais errada em seu tempo, se apaixonar de verdade.

Escreva para quem te escreve: geanpaulonaue@gmail.com

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