APARIÇÃO

“Aparição” é o conto cinco, do mês de maio de 2019.
Escrito por Gean Paulo Naue para o projeto “EU CONTO: um conto por mês durante um ano”. Este arquivo digital foi elaborada pelo autor, valendo a ele todos os direitos autorais. O texto foi revisado por Leonardo Brockmann, criador da editora Casa das Letras.
Venâncio Aires / Rio Grande do Sul — Brasil

Faz três semanas que na última sessão da noite do Cine Imperial, Juliana foi a nova garota da cidade. Eu que a levei, que a encorajei a sair de uma vez por todas. Menina, rodopie um pouco, mal não faz. Primeiro saiu da sua casa, costumeira, depois saiu daqui, totalmente nova, porque eu lhe emprestei as minhas roupas, minha pintura e meus sapatos. Dei a ela os saltos mais bonitos e mais novos que eu tinha. Ela virou pra mim, e disse que já não tinha dúvida da nossa amizade. Não tem nome para a bondade de quem abre mão dos melhores sapatos e os empresta à amiga. “É que com esses você vai ficar mais bonita; além do mais, os meus outros pares já são tão surrados que não encaixariam noutros pés que não os meus”.

Eu disse para ter coragem, quando nos aproximamos da fila pacata, feito chuva de verão, na entrada do cinema. Mas mesmo assim ela travou, cimentou os pés na calçada e dali não vingou. “Vamos, mulher!” Eu discretamente forcei seu corpo a seguir em frente. Feito burro empacado, ela movia-se. Mas quando me faltou força, porque meu braço começara a doer de tanto empurra-empurra, eu usei do maior arroubo que há, e falei com voz firme, como mãe que esbraveja com a filha, que não pode molhar a cabeça um dia depois de parir, faz mal pro recém-nascido: “Anda já! Não gastei horas adornando-te, maquiando-te para chegarmos só até aqui. Se fiz isso foi, é claro, para arribar até lá e de lá sair também”.

Ela, usando o canto da boca: “Se contigo está a ser dificílimo, quem dirá sozinha”. E então caiu na real, na sua real, tendo em vista que quando um navio sai do porto, quando um avião levanta-se, sempre é para chegar a algum lugar.

E foi, água de cachoeira abaixo. Como se não quisesse me decepcionar, afinal eu lhe emprestei o melhor salto que tenho.

Eu que pedi os ingressos, dois, porque o combinado foi que ela não falaria uma palavra sequer. Sentamos lado a lado, e com o lugar escuro ninguém reparou na sua chegada. Não disse nada a ela, mas percebi que cinema não era o lugar certo para dar as caras, ainda mais quando elas são novas e precisam ser notadas.

No meio do filme ela disse que precisava ir ao banheiro. Tão acostumada que estava com sua presença ao meu lado, que eu disse, sem prestar atenção, porque o filme muito me interessava: “Vá”.

E sentindo falta da sua presença ao meu lado, do seu perfume adocicado que era o meu próprio, eu percebi que tudo podia dar errado. Mas o filme, ah o filme, muito me interessava. É só o banheiro, ir, mijar e voltar. O que podia dar de errado?

Porém, perdi o filme dos meus olhos, só ficava de olho naquele quadradinho de luz que vinha lá de fora, esperando. Quando eu vi, voltou. Cambaleando no salto, tomando todo o cuidado do mundo, passando entre os outros e sentando-se ao meu lado.

Não perguntei nada. Parecia tudo certo. Ela esperou uns minutos e me disse, aos sussurros: “Podemos sair mais cedo da sessão? Anastácio me viu, se interessou, sorriu e disse que iria me esperar no fim do filme, na frente do Imperial, para conversarmos. Eu não dei um piu!”

Eu não poderia perder o final do filme, era incabível pra mim. Mas a situação era complicada. Eu assenti, poderíamos sair mais cedo sim. Mas quando chegou na hora de ir, a historia em frente aos nossos olhos estava tão boa que me recusei a sair e dei uma nova ideia: “Que tal se esperarmos todos irem embora e sairmos por último? Ele te esperará lá fora, não irá te encontrar e desistirá”.
Juliana gostou do plano, faria qualquer coisa por mim, mesmo eu não fazendo por ela. Afinal, pus o filme na frente do seu interesse em ir mais cedo. Dali em diante ela ficou inquieta.

As luzes acenderam, todos levantaram menos eu e ela. Esperamos ao máximo. “O filme já acabou, senhoritas”. Veio nos alertar um e com isso levantamos e saímos também.

Outra vez ela estava feito animal que anda de ré. Difícil foi entrar e difícil foi sair, mas lembrei do plano e fomos. “Quando perceberes já estaremos em casa pensando na próxima sessão do Cine Imperial”. Ela sorriu com essa possibilidade.

Anastácio apareceu na nossa frente dizendo achar que já tínhamos ido embora. Inventei que o filme me emocionou de tal forma que foi preciso secar as lágrimas, limpar o rosto, refazer a maquiagem e beber água para me recompor.

Pobre Juliana, enrijeceu ao meu lado. Fiquei imaginando o quanto ela desejaria um homem feito Anastácio, quanto ela gostaria de se jogar em seus braços, beijar seus lábios, deixar sua temperatura de macho satisfazer todos os devaneios secretos que nela habitavam.

Pobre Juliana, amoleceu ao meu lado. Fiquei imaginando quanto doido era ter seus desejos apagados por dedos que não os seus, como difícil era não poder ser ela mesma e ter que se humilhar a usar minhas vestes para sentir alguma coisa, mesmo que esses sentimentos se resumem a um desconfortante medo.

Anastácio perguntou o seu nome, eu lhe disse: “Juliana”. Inventei ser minha prima da capital quando nem isso era. Precisava dizer algo, já que ela, ao meu lado, era pedra e água, pedra e água. Literalmente pedra, porque lhe faltava a vida. Pedra é a falta da vida. Não mexe, não sonha, não, não, não e não. Nada. Mas o homem, desgraçado, não contentou-se e perguntou o nome outra vez: “Deixe que ela mesma me responda, Ana”.

E Juliana disse: “Juliana”.

Ele a olhou como quem olha para um relógio que corre ao contrário. Que estranho. Eu e Juliana havíamos treinado tudo. Ensinei cada passo que uma mulher deve dar em qualquer das direções. Como se movimentam as mãos, os olhos, como arrumar o cabelo, como sentar-se. Inclusive, ensinei a ela como cair no chão com elegância, caso isso ocorresse. Porém, como o acordo era o de eu falar tudo e ela nada, não perdemos tempo com as palavras e uma simples junção de quatro sílabas nos entregou.

“Juliano”?

Por detrás do conto

Não dá para ter noção de quantas histórias um lugar pode agarrar para si e, egoísta, não compartilhar com ninguém. O Cine Imperial é um desses lugares. Em 2019 o cinema mais famoso da cidade permanece de pé em suas metades. Sim, em suas metades, pois algumas paredes, alguns tetos já encontraram o chão. O tempo não costuma perdoar. A fachada permanece conservada, mas nada glamorosa como um dia já foi. Atualmente as pessoas passam ali na frente e nem percebem. O Cine Imperial não capta a atenção nem das formigas, pobrezinho.
Esse conto é, mesmo que distante, uma homenagem a este lugar e suas histórias e ouso estender este significado atribuído ao texto a outros tantos locais que já morreram e ainda não foram enterrados. Foi interessante parar em frente ao Cine Imperial e deixar que ele me contasse sobre a aparição. Não precisei muito, o cinema antigo esperava alguém para quem pudesse contar isso.

Escreva para quem te escreve: geanpaulonaue@gmail.com

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